©juan pablo arenas
 
 
 
 
 
 
 

Para Pedro, Léo e Marcos, meus irmãos

 

 

— Não pegue o que não for seu. Se o dono não permitir, sequer ponha a mão. Também não dê de graça aos outros o que conseguir com o suor do seu rosto. Se por motivo de doença ou alguma deficiência física, um homem não puder trabalhar e precisar comer, divida seu pão. Trabalhe duro, filho, porque a vida é trabalho. Não faça a si mesmo ou aos outros perguntas que ninguém pode responder. É perda de tempo. Ao invés disso, sue a camisa. Agora vá! — disse meu pai quando me deixou em frente ao armazém no meu primeiro dia de trabalho. Fiquei um tempo parado no meio da poeira — um saco de papel com um sanduíche que ele mesmo havia feito na mão —, enquanto o pai partia com a caminhonete para o seu próprio trabalho. Abri o saco e observei meu almoço. Pão, ovo frito, queijo e tomate. Eu tinha catorze anos e, alguns meses antes, a mãe tinha partido, sem deixar sequer bilhete, com um cara três ou quatro anos mais velho que eu. De modo que éramos só nós dois e nem eu nem meu pai gostávamos de cozinhar. Daí o sanduíche. Tinha chegado mais de duas horas antes de o armazém abrir, precisava aproveitar a carona do pai. Ainda não havia viva alma lá. Comi o sanduíche ali mesmo. Não queria que os outros vissem meu alimento. Meu pai exaltava o trabalho. Estudara pouco. Com seis anos já estava na roça, nas colheitas de café no sul de Minas. Trabalhara a vida toda e ainda não tinha conseguido comprar uma casa. Vivíamos endividados. Ele trabalhava com verduras e legumes. Adubava a terra, plantava, cuidava, regava, colhia, mas não tinha muito lucro. Um ano chovia demais e a alface perdia. Outro ano chovia de menos e a rúcula mal brotava. Outro ano dava bicho no tomate. O caminhão quebrava; quase sempre, o caminhão quebrava. O pai trabalhava das cinco da manhã às oito da noite, sete dias por semana, trezentos e sessenta e cinco dias por ano e mesmo assim não conseguimos comprar uma televisão em cores para assistir à copa do mundo de 1986. Quando brigavam, minha mãe vivia jogando isso na cara dele. Acho que ela queria ser atriz de televisão, era bonita, mas não conseguia ser sequer personagem de uma cidadezinha pequena como aquela nossa ali. E aí, um dia, ela foi embora.

— Há muito que fazer, meu filho, você estuda? — disse Seo Zé, dono do armazém.

— Estudo. Estou na oitava série, mas é de noite. Não vai atrapalhar o serviço.

— Um pouco vai, porque o mercado fica aberto das sete da manhã às oito da noite. A que horas você vai precisar sair?

— Entro na escola as sete. Tenho que sair pelo menos umas seis, seis e meia.

— Tudo bem, dá pra gente se virar, mas vai ser descontado do seu salário, entendeu?

Balancei a cabeça indicando que tinha entendido.

— O trabalho é simples. Você está vendo estas prateleiras? Nenhuma delas pode ficar vazia. Assim que você perceber que um produto está acabando, vá ao depósito, pegue mais e reponha. Eu fico pouco aqui no mercado. Estou sempre saindo para resolver problemas, comprar mercadorias, pagar as contas. As chaves do depósito ficam com minha mulher, Tina, é ela quem fica no caixa. Quando chegar um freguês, interrompa o que estiver fazendo, não interessa o quê, e atenda. Domingo fechamos às duas da tarde. Alguma dúvida?

— Não.

— Então não fique aí parado. Nunca fique parado, quando não tiver o que fazer, pegue uma vassoura. Agora, tire todos os produtos, limpe todas as prateleiras e depois ponha de volta.

Peguei um pano, balde, água, sabão e comecei a trabalhar.

Dona Tina já atendia no caixa. Era uma mulher de uns cinquenta anos, conhecida onde morávamos por já ter feito algumas plásticas. Na nossa cidade, naquela época, fazer plástica e encontrar extraterrestres eram sinônimos. O povo dizia que ela tinha amantes, Dona Tina. Não era bonita, mesmo com as plásticas, mas, a maioria dos homens não se importa muito com isso. Hoje, depois dos filmes de Lars Von Trier e tudo, acredito que se tratava de uma ninfomaníaca, não sei.

Eu tinha limpado umas duas prateleiras, quando Charlie chegou, meia-hora atrasado. Cabelo com topete e um rabinho, aquele rabinho bem típico dos anos oitenta, camiseta preta com estampa da Legião Urbana e mangas cortadas, calça justa, botas de caubói.

— Atrasado de novo, Seo Charles! — gritou meu patrão — Já sabe que vai ser descontado no seu salário.

— Sei, tudo bem. É que precisei ir atrás da minha vó outra vez! Ela sumiu de madrugada. O senhor sabe, a velhinha é demente e só tem a mim, não posso deixá-la por aí. Ela pode se perder de vez, adoecer, ser atropelada se for para a rodovia.

— Isso não é problema meu.

— I know, big boss, but é que essa é a primeira primavera em muito tempo, no entanto...

— Quê?

— Esquece.

Então Charlie me viu agachado ali, limpando. Fingiu um susto. Pulou para trás.

— Vish-wish, que diabo é isso?

Sorri.

— Esse vai ser seu ajudante, você não vive reclamando que tem muito trabalho?

— Mas, big boss, esse moleque não aguenta nem um fardo de arroz. Faz o muque ae magrelo.

Ele mesmo dobrou meu braço.

— Tá vendo, o coitado tá só o pó. Não vai dar conta.

— O pai disse que ele dá.

— Se eu não aguentar carregar de uma vez, divido ao meio e faço duas viagens – falei.

— E é marrudo, o trem, vai vendo. Cabeçudo do carai. Então vamos ver se tu é bom mesmo. Completa o refrão... Contra todos e contra ninguém, o vento quase sempre, nunca tanto diz, estou só esperando... Vai, completa, carai...

— O que vai acontecer.

— Ae, moleque, tá aprovado. Seo Zé, pode contratar, eu garanto, o menino é bom.

Todo o tempo Charlie tinha um papel enorme, enrolado e enfiado no bolso de trás da calça, um pôster, todo amarrotado. Sem pedir permissão a ninguém, foi até o fundo do armazém, onde ficava a padaria, pegou durex, subiu numa escada e pregou o pôster na parede.

— Que porra é essa, quem foi que deixou o senhor colar isso aí, por acaso é dono do mercado agora?

— Fica frio, big boss, olha bem pra moça! Não é linda? Vai atrair cliente e espantar mal olhado. Faz mal nenhum. Dá um look.

O patrão sorriu. Não podia com Charlie. A moça era um anjo.

Eu continuava limpando minha prateleira, observando a cena, sorrindo.

— Sabe quem é, moleque?

— Já vi num...

— Quê? Fala alto, parece que tá engolindo as palavras, fala pra fora, lagartixa...

— Já vi num filme, mas não sei o nome...

— Pois guarde o nome e faça uma oração diante da imagem todos os dias, antes de começar a trabalhar: Molly Ringwald.

 

***

 

Encaixei no trabalho como a peça certa de um quebra-cabeças encaixa na outra. Tudo o que eu mais queria era ser um orgulho para o meu pai. A tristeza dele não soltava uma reclamação, um lamento. Só o silêncio ouvia suas dores. Só a quietude escutava seus gemidos.  Às vezes, durante a noite, ele tentava tocar um pouco de viola, lá fora, no quintal. Gostava de Tião Carreiro e Pardinho. Eu chegava da escola depois das onze e o pegava dormindo com a viola no colo. O cinzeiro cheio de pontas. Um homem bom, sem sorte, maltratado sem piedade pelo mundo.

— Vamos deitar lá dentro, pai. Amanhã vamos ter um longo dia de trabalho.

Como meu pai havia aconselhado, eu evitava pensar. Suava a camisa e isso era tudo. Atendia no açougue, na padaria, recolocava as mercadorias, limpava tudo. Feito uma formiga eu insistia com pesos desproporcionais para o meu corpo e minha idade. Até no caixa eu atendia quando Dona Tina dava perdidos com seus amantes. De noite, pegava no sono na sala de aula. Final do mês, entregava todo o dinheiro na mão do meu pai e esperava para ver quanto ele me daria. Com o que pegava, comprava discos e camisetas de rock. Charlie era quem dava as dicas. Sempre falava de Judas Priest e Manowar, mas acho que ele gostava mesmo era de Tears for Fears e Fleetwood Mac e Elvis, claro, cantando umas baladas. No fundo era um sentimental, como quase todos os homens. Num domingo, depois do trabalho, fomos até a casa dele com uma dúzia de cervejas.

Era um quarto e cozinha, longe da cidade, no meio do mato. Vivia só, com a avó que sofria de Alzheimer, Charlie.

— Você me pagou uma cerveja agora já é um homem! — disse, engrossando a voz e me atirando uma latinha.

— Que é isso? Por que você está falando assim?

— É de um livro, O velho e o mar, Ernest Hemingway. Você precisa ler.

— Nunca li um livro.

— Pois precisa começar a ler, ou vai passar a vida toda trabalhando de ajudante geral em armazéns e mercados?

— Que há de errado com o trabalho? Eu gosto.

— Nada de errado, mas um moleque que nem você deveria estar carregando livros e não fardos de açúcar, feijão, arroz, café.

— E por que você não estudou então?

— Não tive opção, tenho de cuidar da minha vó, mas consegui pelo menos terminar o colegial. Um dia, você vai ver, vou para a Universidade.

A avó dele ficava o tempo todo resmungando. Ele a tratava com carinho, mas às vezes perdia a paciência, aumentava o som, gritava com ela.

Charlie não tinha namorada. Ficava com algumas garotas, mas a vida já era complicada demais sem relacionamentos sérios.

— E a Dona Tina? — perguntei.

— Que é que tem?

— Nunca deu em cima de você?

— Uma porção de vezes, mas eu me faço de desentendido. Tô a pampa, acho que Seo Zé não merece. No fundo ele até que é gente boa.

— Acho que ela também não é má. Mas é toda perdida, como minha mãe. Acho que todas elas cresceram querendo ser estrelas de cinema e no final deu tudo errado. Casaram-se com homens simples. Foram viver em cidades pequenas onde nada acontece, não aguentaram a barra. Deve ser difícil ser mulher.

— Podes crer. É difícil pra todo mundo. Se não fosse este outro mundo que inventamos dentro da nossa cabeça, onde somos músicos de rock, jogadores de futebol, automobilistas, estrelas de cinema, ninguém aguentaria a barra. Meio mundo já teria dado um tiro na cabeça.

— Outro dia, Charlie, você tinha ido almoçar, eu estava colocando refrigerante na geladeira e aí a Dona Tina me chamou. Pediu para eu colocar os cigarros naquela parte alta do caixa, onde ela não alcança. Então, quando tava lá fazendo o serviço, ela pegou no meu pau.

— E o que você fez?

— Nada. Deixei.

— E ela.

— Tirou meu pau pra fora e bateu uma punheta pra mim.

— Mau. Não deixe isso acontecer. Você vai acabar se metendo em encrencas.

— Foi ruim. Agora, toda vez que ela grita: Damião!!! — Você sabe que eu me chamo Daniel, mas ela sempre me chama de Damião, outro dia me chamou até de Cosme, é doida — eu sinto um frio na barriga.

— Sai fora. O velho pode parecer manso, mas tem um trezoitão.

E aí eu tomei mais umas duas cervejas e fiquei completamente bêbado. Chorei. Falei que sentia falta da minha mãe. Que minha vida era uma merda. Que meu pai era o melhor homem do mundo, mas ninguém estava nem aí pra ele. E mesmo Deus, que é bom, o cobria de má sorte. Dormi e quando acordei de novo, estava em casa, já era meu pai me chamando pra trabalhar.

Trabalhei mal o dia todo, vomitando como um porco. Prometi a mim mesmo que nunca mais beberia. Todo mundo promete.

 

***

 

Uma merda nunca é só uma merda, ela é a soma de pequenas merdinhas, de coliformes fecais, que acabam numa fossa, numa tragédia. O avião não explodiria se, naquele dia, o mecânico não tivesse esquecido de verificar um parafuso do trem de pouso, se naquela manhã o piloto não tivesse brigado com a esposa, se a pista não estivesse molhada por causa da garoa, se um pouco de óleo não tivesse derramado do avião que pousou anteriormente, se o controlador de voo não estivesse com diarreia. Só a exata combinação dessas pequenas merdas acarretam a catástrofe, a explosão: A MORTE. Se qualquer dos fatores anteriores fosse alterado, teria sido um pouso normal. Talvez com alguma dificuldade, mas nada além disso. Bastaria que o controlador de voo não tivesse comido uma feijoada em lata na noite anterior e duas centenas de vida teriam sido poupadas. Deus e o Diabo estão o tempo todo jogando xadrez e nós somos as peças.

A avó de meu amigo Charlie tinha morrido naquela manhã. Ele apareceu no mercado. Conversou com o patrão. Discutiu um pouco. Veio andando irritado para o meu lado, no fundo do armazém.

— Minha vó morreu.

— Sinto muito, cara.

— Encontraram o corpo no acostamento da rodovia. Pelo estrago, provavelmente foi um caminhão. Acho que sempre pressenti que aconteceria desse jeito. Não tenho dinheiro para fazer o enterro. Não queria que ela fosse enterrada como indigente. Seo Zé não quer me arranjar a grana.

— Também não tenho, Charlie, se tivesse, tava na mão.

— Eu sei, moleque, não tô te pedindo. É só que tudo é tão uma merda sempre. Porra, velho! Vidinha do caralho e ainda nos pedem para sermos gratos. Vai vendo. Vou nessa aí, tentar uma correria.

— Falou. Boa sorte.

Peguei um pano e fui limpar as prateleiras para esquecer, para ver se o incômodo diminuía. Trabalhei sem parar toda a manhã. Deixei o mercado um brinco.

— Tá inspirado hoje em Damião!

— É Daniel!

— Que Daniel, Damião? Do que você tá falando?

— Esquece.

E aí chegou um dos amantes dela. A única parte do mercado que permanecia uma bagunça era o caixa. Ela ficava lá, mesmo quando não havia clientes, folheando alguma revista da TV e não me deixava arrumar. Era por volta de uma da tarde. Nesse horário, o mercado sempre ficava vazio. As pessoas compram coisas para o café da manhã, depois para o almoço e aí ninguém mais aparece até a hora do jantar, se o sol estiver forte então, até as moscas evitam voar.

— Damião, será que você pode dar uma olhadinha no mercado pra mim? Fica aqui no caixa, se chegar alguém você atende. Eu preciso ir lá em cima. Só uns quinze minutinhos.

— Tudo bem — falei e eles subiram para o andar de cima, onde ficava o estoque dos produtos de limpeza.

Para não ficar sem fazer nada, comecei a limpar o caixa...

Se o controlador de voo não estivesse com dor de barriga...

Se o piloto não tivesse brigado com a esposa...

Se o mecânico tivesse sido mais atento...

Se não tivesse chovido...

Quando estava arrumando as caixas de cigarro embaixo do caixa, uma caixinha parecida com um caixa de charutos, ou uma caixa de dominó, caiu e, com a queda, abriu-se.

Havia maços e mais maços de dinheiro. Só notas de alto valor, enroladas, presas por borrachinhas.

"Não pegue o que não for seu. Se o dono não permitir, sequer ponha a mão".

Deus e o Diabo estão o tempo todo jogando xadrez. Nós somos as peças.

Se a avó de Charlie não tivesse morrido...

Se Seo Zé não tivesse se recusado a arranjar o dinheiro...

Se o patrão não tivesse ido ao banco...

Se o amante de Dona Tina não tivesse aparecido...

Se não tivesse inventado de limpar o caixa...

Eu não teria me tornado um ladrão.

Juntei o dinheiro, guardei na caixa, fui lá fora e escondi nos fundos da lixeira.

Dona Tina desceu; percebeu nada não.

O patrão chegou, nada.

Pedi para dar uma saída. Queria ir ao funeral, ver como estava o Charlie.

— Justo hoje que estou sem o outro. Empregado é uma raça folgada mesmo. Vá, vá logo. Suma da minha frente!

— O Senhor devia era fechar o comércio em consideração.

— É o quê?

— Nada não.

Disfarcei até a lixeira. Peguei a caixa. Escondi embaixo da camisa e fui atrás do meu amigo.

Disse ao Charlie que tinha mentido, que tinha umas economias, sempre guardara dinheiro. Estava arrependido, agora. Eu tinha sido um sacana escondendo minha grana, quando ele precisava dela para enterrar a avó.

— Mas é muito.

— Faça um funeral bonito.

— Ainda assim é muito.

— Então pegue o resto é vá embora daqui. Vá para Belo Horizonte, ou para São Paulo. Entre numa Universidade. O dinheiro vai dar pra você ir se virando, enquanto não arranja trabalho.

Ele hesitou.

— Pelo amor de Deus, homem, pegue o dinheiro! Enterre sua vó e vá. Suma! Aqui nós estamos enterrados, porra! Foi você mesmo quem disse. Se quiser, se um dia puder, me devolva o dinheiro.

Ele me olhou de um jeito estranho.

Acho que imaginou a verdade. Ainda assim pegou o dinheiro.

— Um dia vou retribuir.

— Esquenta não.

 

***

 

Não voltei para trabalhar na parte da tarde. Dia seguinte, disse ao meu pai que estava doente e não conseguiria ir ao trabalho. Fiquei na cama.

Era por volta das onze da manhã quando abriram a porta e entraram; meu patrão e meu pai.

— Não disse que ele estava doente? O menino não mente. Meu filho não faria uma coisa dessas. Só ficou em casa porque está mal. Ele já faltou alguma outra vez?

— Não.

— Então?

— Daniel, você pode vir comigo e seu pai até a sala, por favor?

Levantei e caminhamos até a sala. Sentamos os três. Eu e meu pai em um dos sofás, o patrão no outro. De frente.

— Por que você não voltou para trabalhar ontem?

— Passei mal.

— Sei... Sabia que o Charles também não foi trabalhar hoje? Não há ninguém na casa dele.

— Não.

— O negócio é o seguinte, ontem despareceu mais de um milhão de cruzeiros do mercado. Foram roubados.

— Você sabe de alguma coisa, Dan? Se souber, conte — disse o pai.

— Durante todo o caminho até aqui, na sua casa, seu pai afirmou que você jamais participaria de algo assim. Minha pergunta é clara, direta: você pegou ou sabe quem pegou este dinheiro?

Fiquei quieto. Abri a boca para responder, mas não havia voz lá. Era como se eu tivesse de fato perdido a habilidade de falar. Tentei duas ou três vezes, nada.

— Vou repetir, você pegou ou sabe quem pegou aquele dinheiro?

Baixei os olhos. Meu pai morreria desta vez, de dor, de desgosto.

— Fui eu.

O pai levantou. Não estava nervoso. Parecia que algo tinha se quebrado dentro dele. As pálpebras tremiam, os olhos ficaram marejados de água.

— Devolva, agora!

— Não posso, pai.

— Como não pode?

— Já foi, mas posso trabalhar sem receber até pagar tudo, até devolver todo o dinheiro.

— Não quero mais você no meu negócio.

— Não posso acreditar, meu próprio filho, meu filho, um ladrão, ladrão. Roubando o suor de outro homem!

— O Senhor passe no mercado amanhã para acertarmos isso. Não vou à polícia.

— Faço questão de restituir todo o dinheiro. Cada centavo.

— Amanhã acertamos isso.

Seo Zé abriu a porta e partiu.

Eu fiquei sentado no sofá de cabeça baixa.

O pai sentou no sofá da frente e chorou, acho que pela primeira vez na vida. Com as mãos cruzadas sobre o colo. Eram mãos duras aquelas, se o destino houvesse escrito algo ali, o trabalho havia apagado muito tempo atrás, não havia mais uma única linha para uma cigana qualquer ler. Aquelas eram mãos calejadas como solas de sapato, mãos duras, grandes, de pedra, mãos de trabalhador. Olhei minhas próprias mãos e eram mãos de ladrão.

Oblivion.

 

 

março, 2019

 

 

Daniel Lopes Guaccaluz é professor e escritor. Publicou cinco livros. Os mais recentes são os romances No céu com diamantes e Ménage à trois, ambos pela @link editora.

 

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