©laura makabresku
 
 
 
 
 
 
 
 

Cordilheira

 

 

tudo em você é destino:

a arquitetura dos labirintos

a linha indivisível do meio-dia

a palavra cordilheira

tomando o chão das coisas

tudo em você é cume e partida

fuga de Dédalo, asas de Ícaro

mas destino, Alice

não é um lugar

 

 

 

 

 

 

Roseira

 

 

não, eu não olhei

para trás, Orfeu

 

eu, um corpo

serpenteando

sobre a roseira

 

uma ave migratória

tocada pelo fogo

 

 

 

 

 

Transiberiana

 

 

quando chove

penso em fechar a porta

dar vez ao peso

cobrir as frestas

até o osso

mas a verdade

é que poetas mentem

sei porque dormi no trem

e acordei em Vladivostok

saltando toda janela

varrendo todo entulho

abrindo toda saída

te vendo no fim do mundo

 

 

 

 

 

 

Amuletos

 

 

tenho pra mim que você me veria

num café ao largo do mundo

remoendo o azul das coisas

no centro de uma cidade cinza

 

tenho pra mim que você me teria

lábio vermelho, branco pelo

pó de arroz, rímel, cabelo

e dentro uma cidade cinza

 

tenho pra mim que você viria

com seus amuletos e orquídeas

e seríamos qualquer coisa

entre o belo e o absurdo...

 

 

 

 

 

 

Rugido

 

 

há quem chame melancolia

o rugido tardio das pedras

dinamitadas contra o peito

 

mas não há por que dizer

restos de estrondo e pólvora

(as coisas são mais que seus nomes)

 

a mim fere mais

esse burburinho de pássaro

movendo suas asas finíssimas

intocadas pelo tempo

 

 

 

 

 

 

Pele

 

 

a verdade

é que meu ombro não comporta

um pássaro negro

 

já tenho este mapa

tatuado em minhas costas

este céu de linhas vermelhas

este corpo tornado templo

de todo desejo e selvageria

 

e você sabe:

palavra alguma detém a jaula

palavra alguma impele o voo

palavra alguma alcança a porta

 

é sempre do olho o último grito

 

 

 

 

 

 

Linha

 

 

perdida toda palavra

haveria ainda

um anjo tatuado

entre teu nome e o meu

e quando a beleza impiedosa

de sua imensa asa escurecida

partisse de vez

a pequena linha escondida

entre teu nome e o meu

perdida toda palavra

haveria ainda

a delicadeza inequívoca

dos que se movem lentamente

em frente aos leões

 

 

 

 

 

Curva

 

 

e se em vez de arranhar o espelho

eu pusesse a mão sobre a nuca

e ante a curva do meu ombro esquerdo

o amor escorresse lentamente?

 

e se em vez de partir

mil flores de nada

mil versos de quando

mil cacos em tudo

teus dedos pudessem

toda sombra todo muro

toda estrada todo monte

 

empurraríamos a pedra?

 

 

 

 

 

 

Canteiro

 

 

no vão que faz o vestido

quando afunda entre as pernas

pus as pequenas pedras

e agora invento uma cidade

 

que pode uma mulher

quando arquiteta um templo

sem que lhe dobre o punho

sem que lhe pese o colo

sem que se parta em muitas?

 

as menores coisas

dei de mover uma a uma

 

 

 

 

 

 

Entre

 

 

a fera repousa agora

no imenso deserto que invento

entre a boca e o colo

 

mas quando suas garras

cruzarem o escuro

abrirei a porta

e beijarei seus olhos

 

até que me queira

até que me cale

até que me diga

 

tenho, tenho que acordar

 

 

 

 

 

 

Agulhas

 

 

nos dedos de minha mãe

é que as horas desdobravam

os silêncios mais sentidos

 

não que eu quisesse cantar

porque nos dedos de minha mãe

eu também ia e vinha

 

basta agora uma canção amarrotada

ou um suave tilintar de agulhas

e eu alimento relógios antigos

 

 

 

 

 

 

Brio

 

 

é verdade que ainda sangro

e que às mulheres

por brio ou obscuridade

é dado sangrar em silêncio

 

mas veja minha irmã e eu:

a carne exaurindo a noite

as luzes todas acesas

o coração ruidoso

 

se agora canto

é porque desaprendi

a morrer primeiro

 

 

março, 2019

 

 

Daniela Delias nasceu em Pelotas/RS. Em 2012, publicou seu primeiro livro de poesia, Boneca Russa em Casa de Silêncios, pela Editora Patuá. Em 2015, pela mesma editora, publicou Nunca estivemos em Ítaca, também de poesia. Tem poemas publicados no Livro da Tribo, em revistas literárias e no blogue de poesia Sombra, Silêncio ou Espuma. É também psicóloga, professora universitária e uma das Escritoras Suicidas. Mora na Praia do Cassino, em Rio Grande.

 

Mais Daniela Delias na Germina

>Poesia