©jonny lindner
 
 
 
 
 
 
 

A mata da Biquinha

 

 

O apocalipse ambiental está aí não é de hoje

mas a nascente que abastece a minha aldeia estava protegida

— água fresca e pura.

Nesta semana, a matinha em volta da nascente pegou fogo

o fim do mundo direcionou sua sede

— para a água fresca e pura da minha aldeia.

 

 

 

 

 

 

Cinza e carvão

 

 

O homem é cinza do

homem que cinza é

do que é cinza

Daquele que é cinza

do que cinza é

do homem que é carvão do

Homem que carvão é

do homem que é carvão

do que é cinza é carvão

Da árvore

que já não é.

 

 

 

 

 

 

O último soneto comunista

 

 

Ó, meu amor, vamos para Moscou

lá compraremos kit gay e mamadeira fálica

lá comeremos criancinhas trazidas dos States

lá, ó, Moscou, lá seremos ricos e sanguinários.

 

Ó, meu amor, só em Moscou seremos piratas cibernéticos

só em Moscou tomaremos a vodka que o diabo fermentou

só em Moscou mataremos mil vezes Maiakovski

só em Moscou, em mais nenhum lugar.

 

Ó, meu amor, onde mais seremos bandidos livres?

Onde mais seremos terroristas com carteira assinada?

Onde mais?

 

Deus não caminha por suas ruas

os bons costumes não fazem parte da boa educação

Moscou, ó, Moscou, achado redivivo da paranoia delirante.

 

 

 

 

 

 

O carnaval dos dias seguintes

 

 

                            Para Fernanda Morishita, que viu, numa foto,

                            pessoas desatravessando a rua

 

 

Não vem carro, não vem moto, nem bicicleta vem

assim mesmo você opta por desatravessar a rua

e esquecer as auroras

e esquecer as manhãs

e esquecer que seus passos aprenderam a andar para frente

sempre para frente.

Agora não

agora você desatravessa a rua e volta para a calçada

e volta para o hall do prédio e volta para o elevador

e volta para a sala de sua casa e dá as costas para a janela.

Mais que isso

você veste antolhos

você veste luto pela alegria que já já vai esboroar

você veste a retidão dos hipócritas.

Não há mais o que desatravessar

você descaminhou pela rua, descaminhou pela calçada, pelo elevador você descaminhou

mais um passo para trás e você dará início ao balé para uma morte indesejada.

Não

não é sua essa força

que a retém, que a empurra contra a parede, que não a deixa ir

é deles, vem deles.

Se você esperar um pouco, ainda que seja nessa escuridão

um abraço meu e de mais alguém

vai alcançá-la e, em vez de enterrar, rebatizaremos a alegria

e brincaremos sem pressa o carnaval dos dias seguintes.

 

 

 

 

 

 

Três balas

 

 

I

 

 

Mamãe, o que é isso?

Bala, meu filho, bala.

Posso chupar, mamãe?

Ora, não seja bobo, não é de chupar.

Não?

É bala de matar.

E ela matou alguém?

Veja se seu pai está vivo.

Pai?

Pai?

Pai?

 

 

 

II

 

 

Mamãe, o que está escrito aqui?

Eita, menina, onde você arrumou essa coisa?

Estava no meu coração.

No seu coração?

Mamãe, eu vinha andando pra casa, senti uma dorzinha

No coração?

Sim. Aí meti a mão lá dentro dele e de lá tirei isso. O que está escrito?

Está escrito teu nome, minha filha, teu nome completo. Minha filha?

 

 

 

III

 

 

Mamãe, a chuva hoje está mais barulhenta.

Ó, minha filha.

Mamãe, será que vai inundar a casa de novo?

Ó, minha filha, seria melhor que inundasse.

É, mamãe?

Ó, minha filha.

É uma água seca que tá furando o teto e arde quando bate na cabeça.

Ó.

Minha filha?

 

 

 

 

 

 

Depois de o exército matar um músico com 80 tiros

 

 

8 ≠ 80

8 seria muito

80 é dez vezes o muito.

 

A vítima foi uma só

só que 1 = .

 

 

dezembro, 2019

 

 

Alexandre Brandão é um escritor esforçado, não escreve para a plateia, mas é para a plateia que escreve. Tem livros de contos e crônicas. Suas crônicas saem na revista Rubem e em seu blogue, No Osso. É do coletivo Estilingues, que lançou, em 2018, a coleção Estilingues 30 (Editora Patuá), com um livro de cada um dos sete autores. Alexandre sonha em ser poeta.

 

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