AMPULHETA

 

 

quantos pontos

são necessários

para estancar

o sangue

de quem se corta

com cacos

de ampulheta?

 

quantas pinças

são necessárias

para tirar

do sangue

a areia do tempo

que escapou

da ampulheta quebrada?

 

quantos anos

sofridos?

são necessários

para que não se quebre

a ampulheta?

 

basta saber

que

a ampulheta

é por si

torta, trincada

mal lacrada, vazada.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

meus dentes

são entes
de osso.

 

os de cima

nos de baixo

em desalinho.

 

maxilar desrepousado:

sempre!

 

quando durmo:

pesadelo!

range minha mente.

 

acordo

duros os ombros

bambos os dentes.

 

maxilar meu:

por favor

se assente.

 

 

 

 

 

~

 

 

O cutelo cortou o pensamento:

o dividiu em dois.

 

Gêmeos, um de dor

Outro de alegria.

 

A cabeça mãe sofrendo.

Não se dava o direito de escolher

Um dos filhos:

o dilema de Sophia.

 

Caim matou Abel.

 

 

 

 

 

 

TEMPESTADE DE AREIA

 

 

Dor não se mede

Dor desnorteia

Desagrega o ser

 

Que agoniza

Mesmo sem morrer.

 

Dor é falta de ar

Ventania que sufoca

Hiperventilação arenosa

 

Choro seco

De lágrimas secas.

 

Dor

É tempestade de areia.

 

É falta de brisa

Daquela que

Em vez de ferir

 

Alisa.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

Bem em frente

Um vaso de sempre-vivas

As plantas múmias

Sempre vivas porque

Para sempre mortas

Sem cheiro

Nem de vida

Nem de morte

Voltadas prum lado

Que não se sabe se é o Norte.

 

 

 

 

 

ESPELHO MEU

 

 

O espelho despregou-se da parede

Partiu-se em incontáveis pedaços.

Ela sentiu alívio:

— Estou livre de mim!

 

Pegou um caquinho do espelho

E outro

Mais outro.

Olhou um por um

inúmeros que fossem.

 

Em cada um deles estava lá:

inteira e tal qual jamais quisera ser.

 

Em vez de uma

Agora era muitas de si mesma

Completa, a de sempre

Apenas menor e repetida à exaustão.

 

Varreu os cacos

Jogou-os no lixo

Levou-se, a si todas, a mesma

Para fora num saco bem fechado:

não queria que se ferissem com sua dor.

 

Febril

Quebrou um termômetro

E foi brincar de juntar e separar

bolinhas de mercúrio cor de espelho

 

Que

Magicamente

 

Não a espelhavam.

 

No dia seguinte

Não resistiu:

Conseguiu novo espelho

Que a olhasse se olhando.

Sempre gostara de doer

embora não gostasse de doer.

Aglutinou as bolinhas de mercúrio
E as jogou fora:

Não precisava mais.

 

Voltara a ser

Una e fragmentada:

dor e querência de alívio.

 

 

 

 

 

 

ESTRUTURA ÓSSEA

 

 

Às vezes penso que se

Tivesse rosto comprido

Teria levado menos chutes na cara:

 

pés pensam que bolas são mais macias.

 

Às vezes penso que se

Tivesse postura imponente

Teria sofrido menos humilhações:

 

vaidades têm medo de ereções posturais.

 

Às vezes penso que se

Tivesse sido diferente

Teria sido melhor:

 

neuroses são cismas ósseos.

 

Às vezes penso que.

Poucas vezes não penso que se.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

Notivagar

Eu faço cá dentro

O tempo todo.

 

Diavagar

É mais raro.

 

Ao notivagar

Divago.

 

Seja dia

Seja noite

Notivago.

 

Devaneio

 

E me embriago com as palavras

E embregueio meus escritos

 

Como fiz com este.

 

Brega que sou

Sinto o que escrevo.

 

 

 

 

 

 

RECEITA

 

 

Pegue O Pão que o Diabo Amassou. Leve ao Forno do Inferno. Faça farinha com O Pão que o Diabo Amassou. Use para empanar almas depenadas temperadas com enxofre e pimentas das mais fortes em quantidades exorbitantes. Antes da farinha, passe as almas em ovos de serpente. Frite no Caldeirão do Inferno. Crocância garantida.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

A Terra rodopia

E vira dia

E vira noite

Dia e noite simultâneos

Questão geográfica

Questão gráfica.

 

A mente rodopia

E mente o dia

E mente a noite

Dia e noite — ou não — invertidos:

questão emocional

De tristeza

 

Ou de alegria.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

minha caligrafia

(era bonita!)

se perdeu.

 

minha escrita

(prometida!)

nunca se deu.

 

minha alegria

(pouco crida)

não aconteceu.

 

portanto eu

(ida)

fui alguém que

(em vida)

morreu.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

Caso seja deste modo

Pensarei que foi caso pensado.

 

Caso me seja surpresa

Pensarei

 

Se surpresa boa

Que tive sorte

 

Se ruim

Azar, claro.

 

Caso seja inusitado

Chamarei o acaso de criativo.

 

Pois com menos transcendência que isto

Eu não convivo.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

Hoje foi

muito

Hôjico

 

O hoje

Tão hôjico

De tão

Imônico

Me

Mostrou

O quanto

preciso

Monicar.

 

O hoje

Tão hôjico

Mostrou

Que meu

Mônico

É tão

Desmônico

 

Que preciso

Muito

E que ainda

Não sei

Como

nem por onde

De início

Mudar.

 

Desmonicar

Para Monicar

Apagar a Desmônica

que

no fundo

sou eu

 

Me exorcizar.

 

Morrer Desmônica

Nascer Mônica

 

Permanecer

E mudar.

 

Ah, hoje hôjico!

Hoje me bateste

Para machucar!

 

Mônicas

Mórbidas

Vívidas

 

Sentem-se

Súbitas

De dor

E de força.

 

Neófitas

Embora ônticas.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

As pessoas mergulhadas na depressão

As pessoas doem demais

As pessoas deprimidas se dizem

No fundo do poço

As pessoas encharcadas de depressão

Não estão no fundo do poço

As pessoas assim são o fundo do poço

 

O POÇO É FUNDO

 

 

 

 

 

 

~

 

Eu queria ser tradutora de vários idiomas, ser a antítese da Torre de Babel.

 

Eu queria ser pilota e ser a fazedora daquilo pelo que passo quando estou
num avião.
Ah, as decolagens...

 

Eu queria ser clarinetista. Cheguei a comprar duas clarinetas mas, vendo a sandice
do ato impensado, as devolvi.

 

Eu queria ser pianista. Fui um milésimo disto, por ter ouvido para reproduzir
melodias nas teclas brancas e pretas. Acordes e melodia, simultâneos, nunca
consegui. Mãos Marias vão com as outras.

 

Eu queria saber ler uma partitura a ponto de, ao olhar aqueles signos, ser capaz de
ouvir música em minha cabeça.

 

Eu queria ser bailarina para conseguir me equilibrar nas pontas dos pés.

 

Eu queria ter equilíbrio mental.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Mônica Ribeiro: Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Eu? Mônica Ribeiro. Falo a partir do umbigo, mas quando peço: "fale, umbigo!", ele se fecha. Teimoso, falso profundo, menos de um centímetro de breu. Teme mostrar-se, o ele-eu. Guardo-o sob tecidos. Não que isso cale sua-minha voz. Pensamento-voz-sem-timbre, dedos escrevendo, palavra grafada: eis a Minha Paganíssima Trindade.