DIFUSA

 

 

Não virá aquele com quem sonhava.

Sei que mal lhe adivinho o rosto,

mas não perseguirei imagens na multidão.

Sei que não virá,

vestido de brumas e altares.

No entanto, posso encontrar-me,

caminhando difusa numa tarde de outono.

 

 

 

 

 

 

Paisagem para Van Gogh

 

 

Corre uma menina atrás de um gato.

Chora a adolescente a noite que já se foi.

Entre o vento nos cabelos

e a beleza de trigais de puro sol

passam parreirais nas janelas

de trens já sem trilhos.

Só o olho furta-cor do futuro

poderá talvez encontrar o gato.

 

 

 

 

 

 

AMARELINHA

 

 

Divertido seria jogar amarelinha

na calçada em frente à janela.

Tento coragem para tirar o pijama

e descer à rua nas noites de lua.

Qualquer pedra, qualquer calçada,

guarda essa criança.

 

 

 

 

 

 

LONGE / PERTO, AFTER NERUDA

 

 

Lejos un poeta escribe

versos en un caderno.

A lo lejos...

Tão próximo, tão dentro,

de mim e a anos-luz.

 

Puedo escribir los versos mas tristes esta noche...

 

Prisioneira em pensamentos,

Babel de papéis, letters,

words, words, words…

Esparramadas em confins.

 

Puedo escribir que no lo tengo

Escribir que lo he perdido

 

Quantas línguas, quantos países,

nos separam, nos aproximam.

E não conseguimos conversar.

Um sonho faz a ponte,

ainda escuto madrigais.

 

 

 

 

 

 

VÊNUS

 

 

Quando pinto minha boca de vermelho,

penso só em te seduzir.

Assim carmim, assim vermelhos,

os lábios que entreabro,

a olhar para ti...

E a dizer   me ama   me ama   me ama,

esse miado de mulher no cio.

 

Decifra-me,

ou, dis-pli-cen-te-men-te,

com meus lábios vermelhos,

te devoro.

 

 

 

 

 

 

MISE-EN-SCÈNE

 

 

Quando te encontro,

perco a mim mesma.

Não sei se mexo contigo.  

Não sei se me fica bem.

 

Quando te encontro

não sei se sou donzela

não sei se sou vampira.

Penso em puxar assunto.

Penso em romance, novela.

 

Quando te encontro, é assim

século 21 e Idade Média.

Te vejo cavaleiro.

Sou astronauta voltando à Terra.

Não sei se te dou um beijo.

Não sei se finjo recato.

 

Quando te encontro,

não sei quem sou.

Não sei se te proponho um motel,

se te carrego para a missa,

para um protesto, uma manifestação.

Não sei se te convido para um parque.

Ou apenas sigo com os olhos.

 

 

 

 

 

 

URBANO

 

 

Em meio ao cinza,

essas poucas flores no papel de parede

embalam sonhos de infância.

O verde das fachadas

derrama lágrimas vegetais.

 

 

 

 

 

 

INSÔNIA

 

 

Vontade de escrever nos muros.

Medo que a vida venha dos livros.

Pode não me convencer.

Mundo fora?

Mundo cá dentro.

Como posso estar só?

 

 

 

 

 

 

FUSO HORÁRIO

 

 

Este azul no papel,

em meio ao ruído,

comportado, do relógio,

o claro-escuro do quarto

me lembram:

no Japão é dia.

Uma luz nova brilha.

 

 

 

 

 

 

REGISTRO

 

 

Num catorze de um fevereiro qualquer,

assusta-me,

saber que um dia

minha infinita paixão por ti

será uma lembrança.

Entre outras, do verão...

 

 

 

 

 

 

TEIA

 

 

Onde está o meu amor?

Sonha comigo? Ou contempla o seu umbigo?

Em que cidade, em que pensamento,

se perdeu neste momento?

 

Teço fios para laçá-lo

antes que o lirismo me sufoque.

Penetro o sonho do meu amor,

pensando nele

... e lixando as unhas.

 

 

 

 

 

A MAGA

 

 

Todo dia se entregava

a rituais de negra magia.

Transformava-se em meias,

cuecas, camisas lavadas.

Mutava-se em objetos mudos,

escusos, como uma xícara de chá.

Seu nome, o que fora um dia,

dissolvia-se, desaparecia,

ao ligar o aspirador de pó.

 

 

 

 

 

 

NARCISOS

 

 

Solidão não há

em estar comigo.

Solidão havia

no eu contigo.

Eu me perdia de mim.

 

Amávamos somente a ti.

Fiéis narcisos.

 

 

 

 

 

AH! MAR

 

Quando construiu seu castelo de areia,

estava enamorada pelo mar,

seduzida por terras distantes,

seduzida pelas ondas a soar.

Quando construiu seu castelo de areia,

deixou-se levar.

Esqueceu-se da firmeza das rochas.

Esqueceu-se da certeza das matas.

Quando construiu seu castelo de areia,

viveu a beleza do sol, entardeceu a imaginar

sonhou o mar, um manso amante,

a ilusão de um novo lugar.

O mar é paixão

e um dia toma, um dia leva

o sonhador a naufragar.

O mar é paixão.

O mar é força.

Seduz e não se deixa conquistar.

 

 

 

 

 

 

DESEJOS

 

 

Há um silêncio espacial

neste universo da tua boca.

Lento, misterioso.

Uma matemática precisa

aproxima nossos corpos.

Pele, batimentos cardíacos.

 

A verdade é sempre esta

mundo além das teorias.

Entre nós e nossa lógica,

a subversão dos desejos.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Maria Alice Bragança: nasci em Porto Alegre, em 9 de janeiro de 1958, talvez um dia de temporal, como ocorreu em vários aniversários dos quais me lembro nesses tantos anos. Jornalista, mestre em Comunicação Social pela PUCRS, redatora e editora de emissoras de rádio e de jornal, fui também professora de jornalismo e artes visuais. Os primeiros poemas, escrevi por volta dos 14 anos, impactada com a leitura de Drummond. A poesia tornou-se, então, parte imprescindível da minha vida. Publiquei poemas em jornais, antologias e um livro individual, Quarto em quadro, em 1986. Em 2018, participei da 2ª coletânea poética Mulherio das Letras e da antologia Treze mulheres e um verão, organizada pela poeta Bárbara Lia. Mantenho, sem periodicidade, o blogue Alice & Labirintos e participo do coletivo Mulherio das Letras (Rio Grande do Sul, Portugal e Europa).