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Recensão a Onde o Poeta mora seguido de Tradução do Silêncio,

de Maria Teresa Dias Furtado

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"Corro pela borda do poema,/que deve ler-se como um regato"

Fiama Hasse Pais Brandão, Área Branca

 

 

Em Onde o Poeta mora seguido de Tradução do Silêncio, "celebração" e "homenagem" encontram-se associadas, desde as páginas iniciais, no mesmo preito ao poeta português Daniel Faria (1971-1999), autor de uma obra definitivamente "bem situada" nos corações de tantos leitores ao longo de mais de duas décadas; como lemos no poema preambular de Onde o Poeta mora (OPM), também esses leitores terão começado por ficar, tal como a poeta Maria Teresa Dias Furtado, "com os poemas presos ao palato, / Aos dedos, à maneira de pensar" (OPM, p. 37). Sendo certo que cada experiência de leitura é singular e de difícil comunicação, não será todavia excessivo cogitar que, no momento devido, o contacto com estes versos lhes tenha rodeado os sentidos de uma materialidade misteriosa, feita de sons, imagens e sensações de estranha inquietude.

O livro-díptico de Maria Teresa Dias Furtado, poeta, tradutora de Friedrich Hölderlin, Rainer Maria Rilke e Paul Celan e professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, situa-se, de facto, no interior de um desses núcleos de perceção do desassossego, iniciando-se com um ensaio sobre a obra considerada maior de Daniel Faria. Este importante conjunto de reflexões distribui-se de acordo com quatro coordenadas fundamentais, a "Arte Poética", o "Eu Lírico", a "Oficina de escrita", o "Testamento poético", percorrendo os três volumes do poeta publicados entre 1998 e 2000, Explicações das Árvores e de Outros Animais (EAOA), Homens que São como Lugares Mal Situados (HSLM) e Dos Líquidos (DL). Enquanto referências por si concebidas e apresentadas ao público em março de 2019, no âmbito de um curso sobre Filosofia, Literatura e Espiritualidade realizado em Lisboa, estes apontamentos expressam sobretudo a vontade de afirmar a inesgotabilidade exegética desses versos, tomando-se neste contexto o conceito de exegese na perspetiva de W. Dilthey, que a concebera como arte da compreensão centrada na interpretação dos vestígios da existência humana presentes nos escritos1. Tendo formado, inicialmente, o preâmbulo de OPM, livro editado em abril de 2019 como homenagem ao poeta no vigésimo aniversário da sua passagem, o ensaio «Daniel Faria, "o paladar inesgotável da escrita"», limiar dos dois livros de poemas, vem propor-se ao olhar dos leitores como uma tentativa de interpelação e de reconstituição pessoal desses vestígios sem deixar de contemplar a sua natureza poiética. De facto, entrando um pouco na geografia sempre contingente da Palavra poética, é sempre imprescindível recordar que, nela, o sentido tende ao autoquestionamento da sua dimensão referencial para passar a concentrar-se em si mesmo, elegendo-se então como centro privilegiado de uma visão-outra das coisas e dos seres que escapa a cada momento à afirmação axiomática. Daí a inesgotabilidade de sentido da Palavra poética, consequência daquilo que Jean-Luc Nancy determinava para a poesia como "o sentido do acesso a um sentido a cada momento ausente, e transferido para longe" (NANCY, 2005, p. 10).

A transferência para a distância, para lugares e para um tempo de contornos imprecisos, incita-nos enquanto leitores à interrogação permanente, aspeto que, na nossa leitura particular do primeiro livro do díptico, julgamos inclusivamente afetar o próprio título. Lê-lo de forma interrogativa, Onde o Poeta mora [?], permite-nos a abertura a uma série de questões algures situadas entre a presença e a ausência que cada palavra poética se mostra capaz de resgatar. A necessidade de comunicar supõe uma presença cujo sentido a palavra poética vem reconstituir na sua diversidade comunicativa através da imagem. É pela Palavra poética que se faz o encontro com o homem, no movimento de "tornar presente ou visível" que é próprio ao sentido de qualquer homenagem, aceitando aqui o seu possível sentido etimológico de "elevação do homem". Homenagem e imagem complementam-se na necessidade de combater o ocultamento de algo ou de alguém perante o olhar dos outros, resgatando-o assim da ameaça do silêncio absoluto (o silenciamento, damnatio muitas vezes involuntária); essa tarefa mostra-se, porém, desassossegada pelo apelo misterioso do silêncio, uma dimensão criativa simultaneamente ativa e contemplativa cuja importância é reconhecida por poetas como Daniel Faria, que o exprimiu como um "instrumento difícil" (HSLM, p. 183)2 a par de todos os outros com os quais desenvolveu a sua arte e que Maria Teresa Dias Furtado viria a retomar, posteriormente, em TS. Algumas composições, entre as sessenta e duas que compõem OPM, dão conta dessa dificuldade, conforme é possível acompanhar logo no segundo poema:

 

 

O Poeta molda as palavras no silêncio

Do qual já extraiu distracções e insuficiências

Por isso tem as mãos rasgadas,

A escorrer em sangue…

Na água recolhe o fruto que o sara

E assim caminha para o lugar que não é lugar,

Para o encontro.

Os olhos enchem-se de brilhos

A alegria é nítida e concreta

Mas como encontrar palavras para dizê-la?

Pousará as mãos, depois, nas mãos de seus

Amigos e lhes dirá que façam com ele

Um pouco do caminho, que digam palavras

Dramáticas e palavras serenas, muito límpidas,

Para poderem ver também aquele olhar… (OPM, p. 39)

 

 

Guardaremos deste poema duas ideias fundamentais, recorrentes em Onde o Poeta mora seguido de Tradução do Silêncio, ambas circunvagando em torno de um mesmo topos, o da Palavra poética: por um lado, a atenção privilegiada à poiesis da forma, ao fazer assumido na tradição produtiva da ars divina do oleiro que se concentra na depuração e modelação a partir de matéria pré-existente; por outro, e em correlação com a anterior, a ideia de dificuldade na expressão da alegria do novo dizer resultante desse processo laborioso, sustentada no verso "Mas como encontrar palavras para dizê-la?".

Em relação à primeira ideia, pensamos a matéria do ponto de vista do imenso conjunto de palavras à disposição do poeta, encontradas no quotidiano ou tomadas graciosamente de outros grandes poetas com os quais manteve estreitas relações de reconhecimento e que Maria Teresa Dias Furtado reconvoca em OPM em poemas como o terceiro ou o vigésimo sexto, apontando os nomes de Hölderlin, Rilke, Ramos Rosa, Eugénio de Andrade, Herberto ou Ruy Belo, entre tantos outros. Entre esse manancial de leituras diletas, e porventura um dos mais caudalosos pelo imaginário que supõe, está a Bíblia, facilmente associada às imagens líquidas dos versos finais do poema "Do Livro das Meditações 1": "Celeste sumo do livro que é a fonte / Represa aonde vou beber seguro" (DL, p. 216). Bíblia, na verdade, aqui na pluralidade gramatical de escritos, os "amenos bosques da escritura" referidos no mesmo poema, a que se juntam outros textos correlatos como os de Santa Teresa de Jesus ou de S. João da Cruz. A maior fonte, porém, será a que o próprio poeta vai construindo "no centro de si mesmo", o do silêncio interior da criação poética, e com a qual também conta para mitigar as dificuldades da sua tarefa dada a natureza autossacrificial do trabalho depurativo que empreende até à iluminação do poema. Ele sabe que, tal como Maria Teresa Dias Furtado evocou no seu poema, é "Na água [que] recolhe o fruto que o sara", do mesmo modo que, conforme também enunciava num fragmento de Oxálida (OX), "O silêncio / É uma mão cheia de água que queima / O cansaço" (OX, p. 390). Em Daniel Faria, as imagens do sofrimento inerente ao processo criativo são bastante impressivas, atestadas em versos como "Trinquei os lábios até falar apenas com palavras / De um vermelho vivo / E vi o poema mutilado a recuar" (HSLM, p. 178), ou, posteriormente, em Dos Líquidos, "Porque trabalho com os dedos e as veias / Abertas a lama onde sou terra e água" (DL, p. 270). Esta exigência manifesta-se não apenas em relação a palavras anteriormente iluminadas por outros poetas mas a toda a linguagem, poética ou quotidiana, da qual, nos movimentos do crivo e da depuração da matéria prévios à modelação, retém fragmentos sobre os quais administra o progresso de suas dores, emulando metaforicamente o itinerário místico que, nesta poesia, visa a contemplação final do Verbo poético, perfeito corpo glorioso na sua restaurada unidade e iluminação. Maria Teresa Dias Furtado oferece-nos no décimo poema de OPM a medida da harmonia pressentida entre beleza e dificuldade, condições complementares neste processo:

 

 

O percurso quotidiano é pesado e leve

Desde que a manhã nasce até ao cair da noite

Sente a leveza e a fadiga, o suor escorre

Para dentro das frases e o sangue das feridas

Tinge as vogais e a pontuação.

As ruas são lugares de multidão e de solidão,

Por ambas serpenteia procurando a sombra ou o sol ou os olhares,

Em cada ser reconhece a sua raiz e isso torna-o

Irmão do seu irmão, está pronto para todos acolher.

Nos bolsos tem fragmentos de poemas

Tirados de jornais ou de livros antigos.

Sorri… Que posso acrescentar? Nada devo acrescentar,

Mas sim renascer em novas imagens cosidas a tecidos velhos

Em que a vida pulse e a beleza se adense.

O peso do meu dia é a minha alegria. (OPM, p. 47)

 

 

Atrevemo-nos a acrescentar a essa pulsação a adensar-se o verso final do poema cinquenta e dois de OPM, momento em que a poeta nos consente uma resposta provisória à interrogação inicial por nós alvitrada no título do livro: "As palavras restauradas são a casa do poeta" (OPM, p. 90).

A atividade que é peso dos dias do poeta é a da transmutação da matéria entretanto depurada, intervindo no crisol alquímico a mais importante de todas, a sua essencialidade, a sua implicação num processo que solicita a totalidade de um ser disposto a compreender a deambulação, a peregrinatio interior, como aceitação do sofrimento e do risco. É deste modo que ele saúda a sua irmandade com Hölderlin e com todos os "poetas em tempo de indigência" que aguardam, na errância pelo mundo e na escuta ansiosa do poema, o cair do relâmpago e a chegada de novos tempos e de uma nova respiração, vínculo este de que encontramos reminiscências no poema vinte e oito (cf. OPM, p. 66). A dificuldade da tarefa regressa na questão anteriormente levantada pela Poeta: "Mas como encontrar palavras para dizê-la?" (OPM, p. 39). Como comunicar a inefabilidade de uma experiência para a qual as palavras são sempre insuficientes? Como concretizar o desejo de "que ela escreva no interior da boca / a transparência de quem dá a mão à mão de quem conduz" (DL, p. 218), como Daniel Faria solicita em Dos Líquidos? Como fazê-lo, sabendo que, como ainda nos ensinou Heidegger, a língua é o que há de mais perigoso, o perigo dos perigos, porque só ela cria a possibilidade da ameaça ao Ser e é só ela que a mantém em aberto?

A releitura das duas estrofes iniciais do poema "A Magnólia" de Luiza Neto Jorge, um dos mais diretamente compulsados por Daniel Faria em DL, poderá ajudar-nos a encontrar pistas para eventuais desdobramentos. Nesses versos, a matriz de silêncio surge como horizonte do acontecimento mestre pela progressiva concentração da palavra, feita matéria e metáfora, nas suas formas mais leves e dúcteis, até à renovada perscrutação do silêncio no esgotamento do eco3. A palavra pronunciada afigura-se câmara de ressonância em cujas paredes, entre o relâmpago, a vibração e o eco, permanece o silêncio em redor, aguardando a sua perceção no interior de algo semelhante ao "pulso interno de uma luz intermitente" (DL, p. 276). A demanda do silêncio através da Palavra poética supõe que ela se nomeie e que seja escutada em atitude de recolhimento, colhendo com humildade o sacrifício pessoal que esse encontro supõe, mas adivinhando, em contrapartida, a alegria e a luz da verdade de um poder de encantamento superior que transcende esse corpo sublime. Aqui a distinção entre a magnólia de Daniel Faria e a magnólia pronunciada de Luiza Neto Jorge: conforme nos assegurava no segundo poema de "Do ciclo das Intempéries", a sua "É uma magnólia de verdade a todo o redor — maior / E mais bonita do que a palavra" (DL, p. 338). Apesar da beleza indiscutível da "magnólia pronunciada" de Luiza, a diferença reside na posição da escuta e na disposição para o sacrifício, ao ponto de, fruto dessa exigência, o sujeito-poeta poder passar a senti-la parte da matéria de si mesmo, como "um profundo / Rumor na minha carne, a linha que me vai da mão / A outra mão" (DL, p. 340). Uma vez iluminada, a palavra poética passa a fazer também parte da sua fragilidade, sofrendo a mesma predisposição para a queda, para o não-lugar. Aqui a necessidade da sua partilha, do recomeçar da caminhada, da sua libertação para novos voos, da elevação. Maria Teresa Dias Furtado compreendeu-o, ao afirmar no poema XX que "o poeta não nasceu para ser lembrado, mas esquecido. / O que escreveu é já dos outros e ele não quer saber / Se é transformado em canção, sinfonia, fuga ou sonata" (OPM, p. 57).

Fiel a Hölderlin e a Heraclito, o poeta sabe que o fogo divino também o impele, "dia e noite, a partir" (HÖLDERLIN, 2000, p. 69), o mesmo sucedendo com a palavra que iluminou. Encontrada através do centro de si mesmo, na inquietude de uma experiência complementarmente bela e difícil (como a terá descrito Platão), ele compreende que, na errância, é sua a exigência de partilhar o mistério do desassossego, de propagar o raio e a chama. A poeta aceita-a e recolhe dessa experiência verbal os vestígios que lhe permitem reconstituir uma memória-outra do rosto do poeta, saída agora da sua dicção, fruto das suas próprias indagações e jornadas pelo centro de si mesma:

 

 

De encantamento em encantamento, o poeta percebe

Que mesmo nas dificuldades há um laço de amor

Que tudo dulcifica e que o pode partilhar com os mais próximos.

Os que com eles estão na página e ouvem ao longe o tráfego

[intenso.

As rãs saltitam no tanque prodigiosamente

E a tartaruga espera até ser fotografada.

Há mitos, lendas, histórias reais que confluem

No seu espírito como se fossem vagas,

Ele prefere caminhar sobre o chão real de todos os dias.

Já não guarda rebanhos a não ser os do alfabeto, muito

Tresmalhado em vozes sonantes.

Passa as mãos pelo rosto como se nele fosse encontrar outro rosto.

Olha as mãos, fiéis ao ofício de escrever.

Tudo pode de novo acontecer, vinda, regresso,

Permanência…

E o poeta enche-se de esperança ao ver a estátua do vento.

(OPM, p. 80).

 

 

Se, ao longo destes e de muitos outros versos de OPM, Maria Teresa Dias Furtado rememora os diversos nomes a partir dos quais Daniel Faria, nas suas caminhadas, havia extraído "incontíveis paisagens" (OPM, p. 30), já em Tradução do Silêncio (TS) a divisão em dois ciclos sob o mesmo título, "Poemas que Impulsionam", onde se acolhem as cinquenta e três composições da obra, viria sobretudo fortalecer a ideia de natureza dinâmica da busca, da ação intentada através da Palavra cuja força transformadora emerge da atenção a um Outro que, frente ao olhar, devolve a quem o deseje contemplar o seu fundamento espiritual. Na sequência do que já preconizara em OPM, a figura do Poeta, uma vez mais livremente reconstituída nestes versos, renova junto do leitor a promessa de regresso à essencialidade das coisas através do encontro da realidade mais radical que é a do poema e o seu silêncio pressentido:

 

 

Na sua meditação matutina, pensou o poeta que mentalmente

Estamos sempre em viagem até junto dos

Nossos, até junto dos abismos de beleza, até nos poemas

Mais comoventes e inexauríveis. Somos um diálogo em que a

Voz nem sempre se ouve mas se sente, deixando-nos

Imagens indeléveis e vibrantes, como o pulsar do coração.

(TS, p. 136)

 

 

Estes versos pertencem ao primeiro ciclo de "Poemas que Impulsionam", diretamente colhidos na leitura, como nos informa no preâmbulo aos leitores, do ciclo "Para o Instrumento Difícil do Silêncio", o último de HSLM. De facto, num poema desse ciclo, lemos a importante sugestão, na lição heideggeriana, da Palavra poética como forma de habitação e o modo como, pronunciando o sujeito que reclama apenas poder viver "cabendo nela", o faz progredir "em viagem do nada para o silêncio" (cf. HSLM, p. 191). O motor fundamental dessa progressão, no entanto, havia sido antecipado num dos ciclos iniciais de HSLM no poema onde a afirmação do sujeito "em viagem na palavra que se move" (HSLM, 132) se associa à poderosa metáfora do "mecanismo secreto do amor", porventura uma das mais reconhecidas de entre as que constituem o imaginário poético de Daniel Faria. Em 1998, pouco depois do lançamento de HSLM, o poeta, numa célebre entrevista, confessava o processo de perda (de "desamor", como o descrevia) que a edição de cada poema representava para ele e de que modo o amor perdido poderia ser posteriormente reconquistado através da variedade de participantes e de atitudes de um mesmo processo, o do diálogo: "o diálogo do poeta consigo mesmo, do poeta com a palavra, do poeta com outros poetas e dos poemas entre si" (in MANGAS, 2019, p.13). O diálogo como "mecanismo secreto do amor" atuaria no transporte e devolução de afetos entre todas as instâncias referidas, sendo que ao poeta devolveria os poemas quase perdidos e aos leitores renderia a possibilidade de, como fez Maria Teresa Dias Furtado, restituir poeticamente a sua presença no mundo e assim renovar o seu trabalho, o de o "salvar pela beleza" como nos esclarece no poema XVI de OPM (cf. p. 53). Daqui emergem igualmente os sentidos de "Tradução" assentes no título da segunda obra, mais concretamente entre o que toma entre mãos a atividade de transporte ou de condução para além e em regresso aos poemas que lhe servem de mecanismo, e ainda o de metáfora (também esta figura de transporte, de transposição) que contempla a expetativa de indicar pontos de retorno às imagens distanciadas do poeta e daí à reconstituição possível do seu rosto, ou seja, na perspetiva de Levinas, do discurso e da sua significação numa outra textura poética. Esta via fora já aberta por Daniel Faria em poemas ou em certos fragmentos de O Livro do Joaquim (LJ), em trechos de reflexão sobre a amizade como o que em seguida retomamos:

 

 

Na amizade, muitas vezes, a distância é o lugar mais próximo e de

maior proximidade, isto é, onde a presença do outro de tão inteira já

não pode ser medida. Sendo um lugar cheio de saudade, esse é

também um lugar feliz, porque aí sem cessar se regressa e avista. É                   

como o movimento de quem caminha num espaço alto e estreito: é                     

preciso separar os braços e desunir as mãos, para que possa                               

alcançar-se o equilíbrio. (LJ, p. 67)

 

 

A inteireza do outro não é, deste modo, alcançada na ocupação imediata e plena da sua presença, fazendo antes parte de um mais complexo processo de revelação em que, enquanto lugar, se vai descobrindo a partir dos movimentos diversos de aproximação e distanciamento no discurso, acompanhando o ritmo de tradução ou travessia recorrente entre silêncios, na viagem da Palavra poética pronunciada por entre as forças centrífugas que o instam à caminhada e as centrípetas que lhe acenam a estabilidade do "lugar feliz" do equilíbrio. A separação reverte então para a proximidade da presença e para o avistar da felicidade numa caminhada interior que Maria Teresa Dias Furtado destaca num dos poemas de "Poemas que Impulsionam II" (TS, 151):

 

A si próprio ou ao tu pede que caminhe

Para dentro dos cercos onde haverá mantimentos.

Perto estarão pessoas acolhedoras

Mais fiéis do que os amigos

Que continuamente amaldiçoam sem som

a proximidade do eu ou do tu

 

Pede também que esse sujeito se apoie nas vedações

Em guarda atenta à dolorosa divisão da paisagem

O para ti e o para além

De uma solidão infinda por ocupar um lugar

 

E que caminhe para dentro

Onde se movimenta a nora

Apesar da cegueira do burro

No esteio de círculos perfeitos.

A distância, também aí,

Não faltará.

 

O "mecanismo secreto" dos movimentos cíclicos em que o aceno se faz à atenção do Outro e de Si — e recordamos que, para Celan, os poemas são também oferendas àqueles que são atentos (cf CELAN, 1996, p. 66) — constitui parte fundamental da sua própria inexplicabilidade, aspeto em destaque esta obra. O confronto do poema anterior com os versos de Daniel Faria colhidos no ciclo "Do inexplicável" vem reiterar a perceção por parte da Poeta da necessidade de indagação do que se apresenta, logo no primeiro poema do referido ciclo, como "as coisas que no seu estar aí não têm explicação" (TS, p. 141). Entre elas, a Palavra poética na sua inteireza subversiva e autolegitimizadora recorda-nos o modo como à sua condição enigmática apenas se pode aceder por sucessivas aproximações ou desdobramentos junto das suas margens. Para isso, o Poeta Daniel Faria não hesitou em oferecer-nos a sua respiração e cadência no sobrevoo desarticulado dos braços e das mãos que eleva a sua proposta de ocupação do espaço.

Nessa elevação ao sublime das alturas e dos abismos, o silêncio mostra-se a substância incontornável da oferenda poética, como tivemos a ocasião de desenvolver em relação a OPM, e invocá-lo será o mesmo que invocar a Palavra poética que o transporta — que o traduz — para todos nós. No entrelaçar entre palavra e silêncio reside grande parte da força do inexplicável no poema, achando-se já na sua pronúncia ou visão a inteireza do silêncio de que partiu e a que regressará mal cesse a força da sua breve iluminação. O poeta Edmond Jabès afirmava que do silêncio só conhecíamos o que a palavra nos poderia dizer, e que, cito-o agora, "não há história da palavra mas, inalterável, uma história do silêncio. A palavra repete-a constantemente para nós" (JABÈS, 1991, p. 59).

O que Maria Teresa Dias Furtado nos vem propor com Onde o Poeta mora e Tradução do Silêncio é, em suma, a atenção ao modo como "o mecanismo secreto do amor", cuja gestação poética recriara na primeira obra, se exprime no transporte ou tradução do silêncio originário para a palavra poética (e o seu caminho de regresso) e como a partir dele se impulsionam as "transfusões de afeto" que havia destacado em certo verso no final do primeiro livro. Da tradução do silêncio à transfusão da palavra, a reconversão do olhar em cada poema rememora assim os "ritmos invisíveis sobre a terra" que o poeta faz regressar no seu sopro criador. Através dela, poderá o mundo tornar-se um lugar mais acolhedor, poderá o poeta por fim reencontrar o amor que confessara perder aos seus versos e poderá o leitor descobrir o impulso que, finalmente, o eleve acima das muitas contingências que lhe vão todos os dias sonegando fôlego e excelência. Afinal, citando Maria Teresa Dias Furtado, "No fundo, como estrelas, estamos por cima / De todo o mundo só pelo fulgor / Das nossas centelhas inspiradas" (OPM, p. 56).

 

 

Notas

 

1O enquadramento metapoético consolida-se neste livro, por sua vez, com a inclusão de um texto de Ronaldo Cagiano a anteceder OPM, intitulado "Dois Poetas e o Encontro de Mundividências" (p. 27-33), resultante da apresentação da sua primeira edição autónoma em Lisboa, e de dois posfácios de Francisco Saraiva Fino a cada uma das obras, respetivamente "As Moradas dos Poetas" (p. 167-172) e "Abrir a Vida como quem Abre a Casa" (p. 173- 179). No âmbito paratextual, salienta-se ainda o prefácio da autora a TS, "Aos leitores" (p. 103-105).

 

2Os versos de Daniel Faria citados neste texto provêm da segunda edição de Poesia (Lisboa: Assírio & Alvim, 2015). Usamos as abreviaturas mais comuns para esclarecer a proveniência, seguida do número da página na edição referida.

 

3Reproduzimos as duas estrofes em questão: "A exaltação do mínimo / e o magnífico relâmpago / do acontecimento mestre/ restituem-me a forma / o meu resplendor. // Um diminuto berço me recolhe / onde a palavra se elide / na matéria — na metáfora — / necessária, e leve, a cada um / onde se ecoa e resvala" (JORGE, 1993, p. 137).

 

 

Referências

 

CELAN, Paul. Arte Poética, trad. João Barrento e Vanessa Milheiro. Lisboa: Cotovia, 1996.

FARIA, Daniel. Poesia. 2.ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 2015.

FARIA, Daniel. O Livro do Joaquim. Lisboa: Assírio & Alvim, 2019.

JABÈS, Edmond. A Obscura Palavra do Deserto. Uma Antologia, trad. Pedro Tamen. Lisboa: Cotovia, 1991.

JORGE, Luiza Neto. Poesia. Lisboa: Assírio & Alvim, 1993.

MANGAS, Francisco Duarte, "Um Anjo Atingido na Raiz" [Entrevista]. Gazeta literária, Porto, 5ª série, n.5 [2019], pp. 12-24.

HÖLDERLIN, Friedrich. Elegias, 2.ed., trad. Maria Teresa Dias Furtado. Lisboa: Assírio & Alvim, 2000.

NANCY, Jean-Luc. Resistência da Poesia, trad. Bruno Duarte. Lisboa: Vendaval, 2005.

 

 

dezembro, 2019

 

 

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O livro: Maria Teresa Dias Furtado. Onde o Poeta Mora

seguido de Tradução do Silêncio.

Lisboa: Poética Edições, 2019, 192 págs., 14,00€.

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Francisco Saraiva Fino é licenciado em Línguas e Literaturas Portuguesas, variante de Estudos Portugueses, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Portugal) e mestre em Criações Literárias Contemporâneas, na especialidade de teoria da criação literária, pela Universidade de Évora (Portugal). É membro das Comissões de Espólio e de Edição da obra do poeta português Daniel Faria, no âmbito das quais, entre várias atividades, editou O Livro do Joaquim (2007; 2.ed., 2019). Além de outros trabalhos de edição, tem publicado ensaios e recensões em livros e revistas nacionais e internacionais e apresentado comunicações em colóquios. Os seus domínios de investigação têm-se centrado na poesia portuguesa moderna e contemporânea, na teoria literária e no diálogo interartes.