Ao olhar a capa deste livro, pareceu-me ver uma tapeçaria. Não era.

Mas o meu instinto não me atraiçoou. Quando abri o livro, e me encontrei com a colgadura dos poemas no papel, vendo como os versos medravam na horizontal da página, reconheci as tapeçarias tradicionais em que, as senhoras de idade, intercalavam os fios de diferentes cores e debuxavam intrincados desenhos nas teias dos teares de madeira.

A primeira vez que me sentei ao lado destas senhoras, fiquei abismado. Fiquei a olhar para elas, para a mestria com que mesclavam as cores. Molhavam a ponta dos dedos nos lábios e puxavam depois por um fio de uma cor e depois outra, e outra. E atavam os fios, retesavam os fios, intercalavam os fios, e a trama de lã ia crescendo rapidamente, numa mistura de traços espessos, onde se viam pontas soltas e nós.

Por vezes, senti que era uma mescla confusa, mas… elas não davam ares de estar perdidas. Cantavam, puxavam pelos fios e seguiam a trama, fio a fio, cor a cor.

A Beatriz tecedeira pega na teia do livro para intercalar as suas palavras, e as mãos conspiram na escolha de palavras de cores diferentes, que se juntam ou se afastam, se encostam ou se dispersam…

São olhos "de azulpleno", ou "faíscas mudas", por vezes "fagulhas" ou "sílabas de espelho"…

Por vezes, parece que nem escreve as palavras, só lhes rouba o som, só lhes suga o ritmo.

Assim constrói a trama dos seus poemas, onde também encontramos por vezes — como nas tapeçarias — pontas soltas e nós. Talvez por isso, á primeira vista, à primeira leitura, nos pareça por vezes uma mescla confusa… mas, tal como as velhas artesãs, também ela não nos parece perdida.

Porque as artesãs, tal como a Beatriz, sabem que a tapeçaria se constrói a partir do avesso, e quando se vira a obra, é quando toda a paleta de cores faz sentido.

E quando "alguém toca os sinos na grande barca da noite", também estas ilhas da Beatriz se viram sobre o papel em toda a sua plenitude.

 

 

Que tapeçaria nos oferece Beatriz?

 

 

Picasso não é Da Vinci, como Van Gogh não é Dali… cada um tem a sua pintura, o seu código próprio.

Camões não é Pessoa, como Eugénio de Andrade não é Melo e Castro… cada um, tem igualmente, o seu código distintivo que nos permite lê-los, interpretá-los, senti-los…

Beatriz precisa também que a gente a leia e releia para que possamos descodificar a sua poesia subjectiva, mas vibrante, impulsiva e expressiva do seu universo.

Este livro é um arquipélago de emoções. Não nos é dado um continente, seguido, uno, indivisível, um caminho por onde se possa andarilhar num passo seguro, uma cor certa que nos oriente. Pelo contrário. Na sua escrita, tudo são pulos e cabriolas, pinceladas de cor, vislumbres, assobios, caramujos dispersos pelas ilhas… grandes pedras soltas no mar das ideias e das emoções.

É preciso virar o poema, a tapeçaria construída do avesso, para lhe descobrirmos o seu código de leitura e a beleza do arquipélago que então nos oferece.

Esta obra faz jus ao que ela escreveu no seu outro livro Peixe Papiro, em que dizia: "…todas as palavras, todas as palavras, todas as palavras, todas as palavras… devolvi polidas!".

 

 

[Livraria Barata, Lisboa, 25 de Outubro de 2019]

 

 

dezembro, 2019

 

 

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O livro: Beatriz H. Ramos Amaral. O avesso do arquipélago.

Lisboa: In-Finita, 2019, 96 págs., R$ 48,00.

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João Morgado, escritor, romancista, poeta e contista português, é autor de O Livro do Império, Diário dos Imperfeitos, Vera Cruz, Pássaro dos Segredos, entre outros. Mestre em Estudos Europeus pela Universidade de Salamanca e doutorando em Comunicação na Universidade da Beira Interior (UBI), Covilhã, Portugal. Recebeu o Prémio Literário Ferreira de Castro, Prémio Literário de Poesia Arandis Manuel Neto dos Santos, Prémio Literário Fundação Dr. Luiz Rainha Correntes d'Escritas, Prémio Literário António Gaspar Serrano, entre outros.