1.

Um delicado tremor percorre a paisagem. Quase imperceptível à superfície, deve refletir um processo mais profundo, o ranger de placas tectônicas ou dos dentes de deuses atirados no abismo. Os eucaliptos, as paredes das casas do condomínio, os vidros das catedrais e das portas giratórias dos bancos, os cristais dentro dos armários e nos cernes dos computadores — vibram. A certa altura, entende-se: é o tremor peculiar aos hologramas. Estamos em Cromane, onde vivem os heróis em maquiadas ruínas do mais recente livro de Sidney Rocha, A estética da indiferença. Se todo escritor é um ilusionista, todo romance uma ilusão, esse dá outra volta no parafuso. Não nos perguntamos se os fantasmas são alucinações, mas se os vivos não são fantasmas prematuros. A começar pelo fato de que Hana e Michi, os protagonistas ou personagens mais seguidos pelo texto, nos são dados a conhecer mediante uma técnica de proximidade remota ou distanciamento íntimo. Não só eles como os demais moradores do condomínio Amaravati têm o firme propósito de cortar as ligações com o rústico fluxo do mundo. Não de alijar-se, mas de alijá-lo. Aleijar-se do mundo é sua alternativa radical. Fantasmagorizam-se para não ser mais assombrados pela vida lá fora, aqui dentro. Como se esse confinamento autoimposto fosse um requinte, uma intensificação, não um diluir-se. No Livro do desassossego, na seção chamada Estética da indiferença, Bernardo Soares pontifica: "O aristocrata é aquele que nunca esquece que nunca está só; por isso as praxes e os protocolos são apanágio das aristocracias. Interiorizemos o aristocrata". Estimula-nos a adquirir e conservar "serena linha exterior, indiferente porque fidalga, e fria porque indiferente".

Amaravati, a propósito, é nome que talvez queira soar meio hindu e fazer pensar em comunidades místicas. Isso, entretanto, sem efusões de êxtase: paz adquirida, serenidade nobiliárquica. Vizinha ao condomínio de luxo, uma floresta de eucaliptos: cada espécime bebe mais água por dia que dezessete camelos ao encontrar um oásis. Crescendo sem esquilos nem bromélias, é um deserto e o disfarce do deserto como Amaravati é a penitenciária e o disfarce da penitenciária. Falávamos em ilusão. Meditemos nesta: onde se vê o Eldorado, haver Alcatraz. Quando Hana e Michi vão à cidade mesma de Cromane, sentimos que estão passeando num dia de condicional. Por mais que borboleteiem, não têm asas. O único animal conduzido pelos amaravatianos ao eucaliptódromo é o porco. Não para crescer e reproduzir, voltar ao estado selvagem e terminar caititu ou javali a ser perseguido em sonoras caçadas românticas ou macunaímicas. Não. Abatem-nos ali, sem perigo próprio. Michi atira para salvá-los das correntes, segundo Michi, que não pode livrar-se das suas, não alcança o zíper num ponto cego da fantasia. Poderia desvencilhar-se dela, se estivesse disposto a encarar o fato de que por baixo da máscara de homem amante da assepsia do eucalipto há um porco no pior sentido, um porco que devorou a verdade perante uma plateia. E se divertiu.

 

 

2.

A pesquisa no Google iniciada com a palavra "como" mais comum no Rio de Janeiro é "como ser modelo". Noutros lugares, "como ser bem sucedido". Em Pernambuco, "como ser frio". Estética da indiferença. Frieza como objeto de desejo. Subjaz à escrita de Sidney tamanho cinismo que somos induzidos a atos falhos. Em vez de "fique tranquilo, Siberí, me lembro de sua alergia. Vou tirar as cortinas", li "fique tranquilo, Siberí, me lembro de sua alegria. Vou tirar as cortinas". Tirar as cortinas para que a alegria de Siberí, quem sabe, volte com os raios de sol? Tirar as cortinas de teatro entre nós, os sedosos biombos pelos quais nos comunicamos mesmo quando cara a cara?

Em seu elogio a Maupassant, Joseph Conrad diz que todas as grandes virtudes, incluídas as literárias, são frutos da abnegação. A prosa de A estética da indiferença é corolário de uma trajetória de abnegação, de renúncia às fertilidades estéreis, à proliferação infrutífera. Para além de ser um esteta, Sidney Rocha é um asceta do esteticismo. Discorre sobre convulsões subterrâneas através de seus discretos reflexos na planície, indicia entranhas pelo arrepio. Conrad fala ainda numa "inquebrantável persistência de propósito" e no "poder da honestidade artística", em não se deixar desviar do caminho, de seu caminho, por "nenhum dos fascínios que afligem um escritor trabalhando na solidão". "Ele não será levado à perdição pelas seduções do sentimento, da eloquência, dos humores, do páthos; de todo esse esplêndido concurso de defeitos que são transferidos do escritor e sua probidade para a folha de papel" e que "o que lhe falta para o seu sucesso universal é a mediocridade de uma ternura óbvia e atraente".

Fascínios que afligem. Em A estética da indiferença, a combinação da austeridade estilística com um sarcasmo constante como as intempéries gera um efeito incômodo mas aliciante. Tem-se o tempo todo a sensação de testemunhar a vida imitando a Second Life. Cromane é uma cidade virtual, "uma arquitetura toda feita à base de pilhagem". Suas partes vêm de toda parte, Itália, França, Reino Unido, disso que se considera o filé mignon da cultura ocidental. Lembra a Roma freudiana em que os templos pagãos e as igrejas construídas sobre seus alicerces, e com suas pedras, coexistem.

Em Amaravati, contudo, não há antagonismo. Tudo soa transparente, retine cristalino. As casas estão cheias de vazio. Além do eucaliptódromo, canaviais são mencionados: comungam da proverbial monotonia. Pode-se dizer o mesmo da biblioteca de Hana: os clássicos foram edulcorados, os finais adulterados, os suicídios retroagidos. A Second Life imita a vida, mas a vida, sob o rebatimento da Second Life, torna-se uma terceira via, onde não há gratuidade. Percebe-se sempre um interesse. Num jogo quer-se somar pontos, todo sacrifício e sua dissimulação visam um resultado vantajoso, um lucro ainda que emocional: as emoções entendidas como capital, mercadoria, digamos logo, como dinheiro.

 

 

3.

Quando a vida crua se apresenta, é devaneio e encenação, teatro, outra vez. Uma família sendo eletrocutada repercute Laocoonte e seus dois filhos, cabos elétricos são as serpentes. Até a ausência da mão direita está ali. O pó e a névoa dão ao conjunto o aspecto do mármore, porém há sangue. Houve uma explosão ou passou ali uma medusa às avessas que transforma pedra em carne, artifício em coisa viva, devolve ao real seu caráter desmesurado, monstruoso, urgente, coletivo, primário? Não é possível deslogar, não é possível desligar, não é possível se desligar dos demais. Vamos de mãos dadas foi um convite em Drummond. Em Sidney é a advertência de que nossos destinos estão atados: se a maioria caminha para o abismo, te arrasta, e não há Amaravati que salve.

A gourmetização de todos os gostos não deixa ninguém incólume. Quando se vai atrás do sabor antigo, descobre-se que a sensibilidade original foi perdida, ou adulterada. Tudo é irreversível. Com que parcela da experiência humana isso já não terá acontecido? Em quanto foi empobrecida a célebre aventura do espírito? Algo mais triste que um pássaro de asas cortadas? Talvez o futuro não consista na substituição dos humanos pelos robôs, mas na robotização voluntária dos humanos. Do alto da paisagem, talvez em Amaravati, ciente ou crente que as distopias dos livros não se realizaram, alguém dirá: Vencemos. Alguém que leu melhor, seu robô-assistente, retruca: quem poderia ter vencido não está mais aqui. Não terá data certa a extinção da humanidade, a não ser simbolismos como a morte do último aborígene da Austrália, após mendigar nas ruas de Sidney, mas estará consumada.

Negação graciliânica da graça, a aridez de A estética da indiferença é não apenas programada, mas também programática. Um livro sobre os desertos e as desertificações da cultura, fala-nos de outra modalidade de vidas secas: a dos retirantes do real.

 

 

dezembro, 2019

 

 

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O livro: Sidney Rocha. A estética da indiferença.

São Paulo: Iluminuras, 2018, 246 págs., R$ 62,00

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João Paulo Parisio é autor de O útero e a quimera, romance, uma das obras vencedoras do Prêmio Pernambuco 2018, Homens e outros animais fabulosos (contos, 2018, Patuá), Esculturas fluidas (poemas, 2015, Cepe Editora) e Legião anônima (contos, 2014, Cepe Editora). Tem textos veiculados em publicações literárias, a exemplo das revistas "Gueto", dos suplementos "Pernambuco" e "Rascunho", dos sites "Interpoética" e "O Recife Assombrado". Participou do segundo volume de Ficcionais (textos, 2016, Cepe Editora), onde "escritores revelam o ato de forjar seus mundos". Nasceu em 4 de setembro de 1982, no Recife. Instagram: @jpparisio.

 

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