No panorama contemporâneo da produção literária paulistana, Carlos Pessoa Rosa tem um lugar assegurado entre os poetas-prosadores de expressivos recursos. Artista pós-moderno, sua poesia, de grande apelo imagético, por vezes se avizinha à prosa, como em seu poema-livro Mu-Kambo; a prosa, por sua vez, se tinge de um fluxo poético ora contido, ora violento e envolvente, fato que pode ser conferido nos contos que compõem A cor e a textura de uma folha de papel em branco.

O trecho inicial do primeiro conto, "Crise da razão tonal", é ilustrativo do que acima se afirma:

 

"E a navalha cortou a névoa que se abateu no rosto da cidade, no pacato cruzamento da principal avenida. É noite e chove; chove um líquido vermelho e viscoso. Aborto. Palavra solta. Igual ao ato que deixa feto em lata de lixo. O ódio de ver sangue vazando e corpo vazio de filho anula. Há um mapa sobre a calçada que resiste à chuva. Pele macerada em cal, raspada e polida. Há muitas tatuagens no couro do asfalto".

 

Além do apelo imagético, o ritmo nervoso dessa prosa — mais alicerçado na parataxe que no fluxo sintagmático — toma de assalto o leitor, exigindo deste uma atenção concentrada que haverá de ser companhia constante pelas cento e vinte e nove páginas e seus oito contos.

Até mesmo por isso a menor dispersão é fatal. Rosa, ao tecer o destino dessas criaturas urbanas, circunscritas ao universo hostil e melancólico da metrópole, não cede à facilidade, à saída fácil; exigente para com seu leitor, acaba aguçando-lhe a percepção, despertando nele a poesia adormecida pela rotina da cidade, ainda que o processo se dê em meio ao charco imundo de um universo amoral, sórdido, povoado por ébrios e prostitutas, niilistas e cidadãos dúbios.

O excerto destacado do primeiro conto é exemplo expressivo: nele, um aborto vem à luz; um assassinato que se entrelaçará com outro — a morte de um cafetão — e, por fim, com um suicídio. Nada mais que simples desvanecimentos físicos de vida que já há muito haviam desvanecido; sim, porque na prosa de Rosa — esse médico que se recusa a prescrever antídotos à humanidade, sequer analgésicos — o fator humano se perde em meio à selva de concreto. A individualidade, os sonhos e anseios são materiais descartáveis — o cirurgião/artista, por sua vez, não se distrai da autópsia que está levando a cabo.

Tanto a individualidade está em crise nesse território que já no primeiro conto os personagens são inominados (expediente que se repete em outros contos); a ligação com o próximo é maquinal ou utilitarista: a mulher solitária e mundana sequer transcende seu papel de "necessidade fisiológica" ("Crise da razão tonal", "as criaturas de Balthasar"). Na modernidade imersa nas relações líquidas, o transitório é o permanente.

A persona social é uma miragem. Em "A mulher benzia a casa e acendia incensos vários", o conceituado professor universitário é apenas a carapaça de um noctívago degenerado, viciado em jogos de azar. Em "A lua é feminina", a plena vazão do que é íntimo está circunscrita aos apartamentos/incubadores de vida (e só a nós, leitores, é dada a contemplação de tais universos internos, na indiscreta janela hitchcokiana que o conto se configura).

Ainda quando tais seres são nomeados nessa ficção, estão cristalizados numa identidade taxativa, opressora: Amâncio-casado-pai-de-dois-filhos, o-filho-mais-velho-em-tudo-igual-ao-pai, a mulher-emudecida-pela-tarde... Tais são os nomes/destinos dos seres que inutilmente se pavoneiam no espetáculo da vida, para depois se retirarem, no conto "Tiras".

Expediente não muito diverso ocorre no trágico "A cor e a textura de uma folha de papel em branco", em que presenciamos um nefasto triângulo amoroso protagonizado por seres de quem sabemos pouco mais que suas nacionalidades.

Essa é, contudo, uma fração do que se antevê, no decorrer desses oito contos, do universo ficcional de Carlos Pessoa Rosa, em meio a um realismo urbano com ecos de Plínio Marcos e Nelson Rodrigues. É um universo em declínio, povoado, em grande parte, por seres marginalizados; homens que, ao pisarem no palco, já o fazem com a ideia estabelecida de uma vida sem sentido, que mais vale abandonar que viver (embora, geralmente, não tenhamos acesso as suas histórias precedentes, e possamos questionar suas razões). São seres já desenganados de todo pelo médico-autor.

Os instrumentos dessa operação analítica são os mais diversificados, desde a poética mais apurada até a prosa mais árida; desde a alternância narrativa paralela entre dois destinos, feita entre capítulos ("Crítica da razão tonal"), seja a mesma alternância entre parágrafos ("As criaturas de Balthasar"). Eis uma prosa exigente, desenvolta, por vezes clara como um céu limpo alumiando um passeio num parque, outras vezes obscura como a noite ocultando as asperezas num vagar errante por entre bosques ("Improviso em tom menor", "Os sonhos de Paula").

Não se pode prever como o leitor irá reagir (se reage) após a operação empreendida por essa obra, mas certamente sua percepção sairá dela mais aguçada.

 

 

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O livro: Carlos Pessoa Rosa. A cor e a textura de uma folha de papel em branco.

São Paulo: Do autor, 1998, 120 págs.

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março, 2019

 

 

Clayton de Souza é escritor, autor dos livros Contos Juvenistas (Patuá, 2013) e Versos de Imprecação Contra o Mundo (Penalux, 2018) em colaboração com o poeta Wítalo Lopes Moreira. Colaborador do Jornal Rascunho. Reside em São Paulo.

 

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