A intimidade de um poeta é indevassável. Mesmo que se tenha a oportunidade de frequentá-lo, gozar de sua amizade ou partilhar com ele mutuamente impressões sobre a vida e seus mistérios, sempre algo se manterá latente, preservado do escrutínio dos homens e da sociedade. Em parte, isso se dá porque a natureza que vive não é a mesma que escreve (o que, mais de uma vez, gerou profunda decepção ou desconforto no leitor ou admirador); em parte também porque certos escritores deliberadamente se constroem uma espécie de "carapaça" a manter a distância qualquer que se aproxime com a firme convicção de "transpassar as fronteiras".

Exemplo mais expressivo do segundo caso é o do poeta Carlos Drummond de Andrade, e não deixará de causar certo espanto que quase octogenário e sem ter concedido sequer uma entrevista em toda sua longa vida, tenha enfim "capitulado" para uma jovem jornalista inexperiente, Nanete Neves, a autora de O poeta e a foca, livro publicado pela editora Reformatório.

 

 

Paralelas que se cruzam

 

 

O leitor desavisado, ávido por pormenores reveladores de um dos gigantes de nossa literatura, pode frustrar-se ao iniciar a leitura: é que o escopo da obra não é escrutinar incansavelmente gestos dele, suas opiniões, ou coisa que o valha, nas poucas horas de seu encontro improvável com uma "foca" (jornalista iniciante). Ao revés de um texto jornalístico, o que se tem é desde o início, a presença forte da autora, reconstituindo sua origem no bairro da Mooca, em São Paulo, passando por suas primeiras incursões em periódicos vários, até chegar ao Shopping News onde, pelo acaso, será justamente a escolhida para tentar entrevistar o esquivo poeta, no Rio de Janeiro, onde então reside.

Para a empreitada, lhe são confiados quatro dias em estadia num hotel de segunda, mas tais recursos e uma lista de encontros com nomes ilustres do cenário artístico, direta e indiretamente relacionados ao poeta, mostrar-se-ão de grande auxílio no caminho.

Nessa primeira etapa torna-se patente uma parte do objetivo do livro: desvelar a nós, leitores, os bastidores da imprensa e suas peculiaridades na década de 70; as buscas pelos "furos", o feeling, os caminhos para se buscar a informação e os contatos numa época em que o Google não era sequer um delírio na mente de algum visionário. Mais que tais peculiaridades, resgata-se o contexto da época: um Brasil gozando de um insuspeito "milagre econômico" (que haveria, pouco depois, de cobrar seu preço), mas amordaçado, com alguns cidadãos sumindo de uma hora para outra e jornais, enquanto isso, publicando receitas culinárias em suas capas...

É nesse momento do livro, quando a expectativa do "encontro", presente desde as primeiras páginas, segue num crescendo, que o leitor testemunha os encontros da jornalista com grandes vultos de nossa cultura, de Antônio Callado, passando por Ferreira Gullar, Nélida Piñon, Antônio Houaiss, dentre outros, até chegar a Pedro Nava. Aqui, precioso é o testemunho íntimo que se obtém sobre o poeta, não menos revelador que o obtido de seus antigos subordinados e colegas de trabalho quando de sua passagem pelo IPHAN; tudo unido aos dados biográficos do poeta, objetos de outros capítulos, contribui para a construção de uma personalidade meticulosa e reservada, menos taciturna que alegre, de um humour peculiar, mas circunscrito aos mais próximos, generoso a sua maneira com uns, lacônico com outros. Em suma, uma confluência de personas justapostas.

Enfim, o encontro com Drummond é o cerne do livro, em condições tais que mais valem ser preservadas para a descoberta do leitor. A pintura que Nanete nos faz das circunstâncias permite-nos imaginar a figura lendária de nossos pensamentos posta nos contornos comuns das ações comezinhas:

 

"Queria contar ao leitor a surpresa de ver o próprio Drummond abrindo a porta para mim (...) com um aperto de mão e os dois beijinhos típicos dos cariocas (...) ele se movia, passos ágeis para a idade, embora miúdos (...) se sentava ereto, ora com as pernas juntas, ora cruzadas à moda feminina".

 

E é curioso que mesmo em meio a isso, o enigma Drummond persiste, seja na figura de uma Bíblia aberta num canto da casa, ou um "Deus te abençoe", acompanhado de um paternal afago na cabeça da jovem jornalista... Cônscia desse fenômeno, a autora se acautela de tentar "esgotar" esse enigma, investindo mais nesse sereno encontro de opostos (a jovem inexperiente/o septuagenário poeta — o que equivale ao menos ao dobro do homem comum em termos de existência). O resultado desperta uma sensação terna, reflexo em parte da relação que então nasce entre essas duas pessoas.

Nanete Neves conduz esse conjunto num estilo bem simples, quase cúmplice com o leitor, menos num estilo jornalístico que no memorialista, acentuado com reproduções de fotografias pessoais, mas também com documentos da época, tanto mais valiosos quanto reveladores da "aura" daquele momento. É este um dos atributos do ótimo trabalho da editora, o que unido ao já citado estilo da autora (que magnetiza o leitor à obra) só torna ainda mais agradável o exercício da leitura.

O poeta e a foca recomenda-se a si mesmo pelo assunto de que trata, mas referenda ainda mais a recomendação pelos atributos aqui elencados.

 

 

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O livro: Nanete Neves. O poeta e a foca.

São Paulo: Pasavento/Reformatório, 2015, 152 págs.

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março, 2019

 

 

Clayton de Souza é escritor, autor dos livros Contos Juvenistas (Patuá, 2013) e Versos de Imprecação Contra o Mundo (Penalux, 2018) em colaboração com o poeta Wítalo Lopes Moreira. Colaborador do Jornal Rascunho. Reside em São Paulo.

 

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