Frutos Estranhos

 

 

                            "Southern trees bear a strange fruit

                            Blood on the leaves and blood at the root

                            Black bodies swinging in the southern breeze

                            Strange fruit hanging from the poplar trees".

                            Strange Fruit, canção interpretada por Billy Holiday.

 

 

No tempo possível,

talvez na chegada da noite enlutada

os frutos estranhos serão colhidos.

 

Alguém romperá o talo desnatural

que lhes enlaça o pescoço

e lhes suspende como frutos negros,

estranhos,

à beira da clara estrada.

 

Alguém enterrará fundo os frutos: sete palmos cantados

num aleluia que abre as portas do céu

como quem mostra o caminho secreto

para o quilombo possível.

 

No ventre terroso e úmido de breu,

os frutos estranhos criaram raízes enormes

e cresceram altivos, como árvores brutas

que à noite entoam lamentos e juram voltar

numa revoada de violentos fantasmas.

 

 

 

 

 

 

Mitologias

 

 

                            Para Luíza Bairros

                            (*27/03/1953 - 12/07/2016)

 

 

Ela adentra a sala luzidia

e sua longa asa negra fere o vento.

Parte do que nela brilha veio no porão tombadilho,

parte se fez de estrelas despedaçadas

do que resta, nenhum mistério explica.

 

Ela adentra a sala e sua voz robusta redesenha o dia.

Dizem que ela engolira pássaros,

e suas penas ficaram para fora,

compondo um sorriso feito de voos leves.

 

Ela adentra a sala como uma deusa liberta.

E, nas suas mãos, se acende um fogo intenso,

nos seus pés moram tempestades,

e ela anda, abrindo com o corpo miúdo,

estradas Ogunizadas na forja da vida.

 

Um dia, ela abriu uma porta e saiu da sala

como quem vai buscar um livro, e não retornou.

King, Malcolm, Angelou, Lélia. Luíza não morreu.

Cobriu-se do segredo que transforma certos ancestrais,

em Orixá.

 

 

 

 

 

 

A partida

 

 

                            Para José Carlos Limeira

                            (*01/05/1951 - 12/03/2016)

 

                            "Se Palmares não vive mais/

                            faremos Palmares de novo".

 

 

Do dorso do poeta nascem borboletas.

No seu peito, uma selva encantada.

Que serão de suas mãos leves

flutuando no nada?

E seus olhos fechados,

terrivelmente abertos para dentro

como uma porta que batesse sem vento,

como janelas silentes, mal-pintadas.

 

Que será de sua falta incrustada no vento,

no tempo, nas horas desencantadas?

E as musas vindouras, coitadas,

não terão o dom de lhe fazer nascer,

na língua,

palavras.

 

O poeta se foi e agora caminha numa nuvem macia.

Recita os poemas de boca calada,

no puro gesto de ser estrela.

O poeta se foi como o fogo, se queimando devorado.

Foi-se, e no ar se move sua ausência crua.

Foi-se, e as palavras permanecem vivas

como baobás plantados na nossa alma.

 

 

 

 

 

 

NOMALI

 

 

                            "O filho que não fiz/ hoje seria homem.

                            Ele corre na brisa/ sem carne e sem nome".

                            Carlos Drummond de Andrade

 

Ela não virá. 

Sua presença ficará dependurada no céu das possibilidades.

Como a música que leva o seu nome,

ela será bela e fruirá de uma ausência encantada.

 

Enquanto ela não vier,

flutuará no horizonte uma menina esguia.

Seria aquele o seu nariz?

Teria ela os meus quadris?

Como explicar a ela:

filha, todo amor é por um triz.

 

Sabemos que ela não virá

e sua ausência preencherá as madrugadas.

Levantaremos com os ouvidos exaustos da ausência do seu choro

dos meus peitos brotará um leite de esquecimento

e cada dia seu será repleto do silêncio deste nome.

 

Enquanto ela não vier

seu não-ser devastará a terra

e nada mais que se plante, se erguerá 

sem que a sombra desta dor marque as colinas.

 

Nós seguiremos,

e seremos um para outro o que é feito do vento nas Maresias.

A falta dela preencherá todos os dias

e nosso silêncio perdurará como as pedras que ferem a Água,

Até o dia em que,

apaziguada,

ela venha dilacerar o mistério do seu próprio nome.

 

 

 

 

 

 

Eros e Psiquê

 

 

E então dei-me conta de que não sei de suas mãos.

Há peso nestas mãos de pássaro?

Há guelras perfumadas como as dos peixes?

Há estrelas, como na sua boca?

 

Apenas não sei.

Limito-me a saber do cheiro de sua virilha,

De como ficam seus cabelos presos,

nossos sonhos soltos.

Sei já o nome da nossa filha,

cada dobra pequena de nossa música,

mas, de suas mãos, nada vislumbro.

 

Não sei como se tecem, em fios,

os labirintos de seu destino.

Serão elas quentes quando,

finalmente,

se trançarem nas minhas?

 

{Sei que elas, quando dormem,

aninham sua orelha

e ali devem filtrar sonhos menores.}

 

Mas penso se seu dedo mindinho

conversaria com o meu.

Se seu braço guiaria, na frente, os nossos.

Penso na grande lacuna de que padecem minhas mãos,

lançadas ao desamparo de não saber das suas.

 

Todas as noites explico às minhas mãos

que temos enlaces maiores

e que todo peixe escorrega aquoso por dentro da Água.

Que é assim mesmo,

que elas não se afobem,

que o peixe nada, mas é na barriga das Águas.

 

Mas não há remédio.

 

Eu durmo, exausta, e elas permanecem insones,

bárbaras,

tecendo um manto inteiro,

todo feito de véspera.

 

 

 

 

 

 

Na beira

 

 

                            Para os que têm fome e sede de justiça

 

 

A gente brinca

A gente transa

A gente come

A gente trabalha

A gente vive apesar da desesperança.

 

A gente vive pra enganar o medo.

Pra fazer de besta o juiz imoral.

Pra esquecer desta justiça caolha.

A gente devia avisar que a toga é curta

pra lhes cobrir as vergonhas.

 

A gente vive.

A gente é carne de pescoço.

A gente insiste e brinca

A gente persiste e transa

Come

Trabalha

A gente é carne de pescoço

mas tem hora que a nossa maior tentação

é usar a navalha.

 

 

 

 

 

 

Asè

 

 

O Tempo não passa.

O Tempo não para.

O Tempo não conjuga verbo.

Não interpreta.

Não precisa.

 

O Tempo todo se gasta em Ser.

 

Como se, de joelhos, eu contasse os grãos duros da espera.

Eu entro na fresta fresca do Tempo.

E fico temporã.

Sou um animal vestido de branco.

Um corpo-casa d'alguma coisa que brilha/navalha.

 

Sou a dobra de uma Concha.

Um iníciofim, sem entrepostos.

Uma renascida, pactuada.

 

Deito na bem trançada esteira da vida e durmo com os olhos do segredo.

 

Depois que de nada lembrar,

mais serei.

Tal como Sereia encantada

Vou morar dentro do Tempo que apenas é,

sem jamais esquecer.

 

 

 

 

 

 

Odé

 

 

Quando o caçador cala,

É a flecha que fala.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Lívia Natália é poeta, Doutora em Literatura e Professora de Teoria da Literatura na Universidade Federal da Bahia. Autora dos livros Água negra (Prêmio Banco Capital de Poesia/2010), Correntezas e outros estudos marinhos (ed. Ogum's Toques Negros, 2015), Água negra e outras águas (Caramurê, 2016), Dia bonito pra chover (Prêmio APCA de Melhor Livro de Poesia do ano de 2017/ Ed. Malê, 2017) e Sobejos do mar (Caramurê, 2017). Participa da antologia É agora como nunca (Ed.Cotovia/Portugal e Companhia das Letras/2017). Em 2018, lançou o seu primeiro livro infantil, As férias fantásticas de Lili (Ciclo Contínuo/2018), uma história narrada em versos.