©cristian marianciuc
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Durante os anos que dediquei ao estudo do haicai, nada me impressionou tanto quanto os diários de haicai. Misturando prosa e verso, são pequenos livros nos quais os haicais vêm rodeados por um texto que os situa, que define o quadro no qual se deu a percepção cristalizada no haicai. Naquela época, li com grande prazer diários de Bashô e de Issa. Deste último, aquele sobre os últimos dias de seu pai, de pungência quase insuportável. Nos últimos dias de 1990 e começo de 1991, escrevi dois diários. Anos depois, ao organizar um volume de haicais, publiquei apenas os versos, despidos da prosa que os acompanhou, mas na sequência em que ocorreram. Agora, não sei se com algum sentido, publico o texto completo.
[Paulo Franchetti]

 

 

Viagem a Minas Gerais

 

 

No fim do ano de 1990, fomos passar o feriado em um sítio entre montanhas, perto de Monte Belo.

Os habitantes do lugar o chamam de Sítio da Serrinha. É um lugar comum, sem história além das estradas que vão cruzando os montes e acompanhando o contorno das propriedades. O verde dos campos não se manchava, ali, com os efeitos do calor e soprava constantemente um vento que parecia vir de dentro das montanhas.

No primeiro dia, passamos a manhã na varanda:

 

Quando me canso da paisagem

Do Leste, viro a cadeira

Para Oeste.

 

Longa parte do dia foi consumida em modorra e em contemplação, e ao fim da tarde, depois de comer, jogamos os restos para a criação da casa.

 

Mesmo com fome,

Não se apressa como as outras

A galinha manca.

 

Recompostos da viagem, no segundo dia andamos por toda a redondeza.

 

Ao pôr do sol

O brilho humilde

Das folhas de capim!

 

Tendo ido comprar cerveja na venda, voltamos no começo da noite. Um amigo dirigia, e eu desci para abrir a porteira, subindo a pé sozinho em direção aos outros.

 

A porteira bate —

Do meu lado esquerdo,

A lua de verão.

 

Os dias eram lentos, e o ritmo, marcado pela voz dos animais e pelas necessidades mais simples da casa, aos poucos se ia imprimindo em cada um. No terceiro dia, no meio da tarde, alguns passearam entre as árvores, abrindo picadas com facão.

 

Dentro da mata —

Até a queda da folha

Parece viva!

 

À noite, depois do jantar, comendo castanhas e tomando vinho, aguardávamos em volta da fogueira.

 

Entre os mugidos do gado

E o cheiro de capim,

Nasce a lua cheia.

 

 

Na manhã seguinte, todos saíram cedo, em passeio a uma represa que ficava longe dali. Às quatro da tarde, ninguém voltara ainda. Andei pela casa toda, sentindo falta das crianças.

 

Não há comida

E as moscas se ocupam

Em fazer mais moscas.

 

Era dia de Ano-Novo, e os campos estavam ainda mais silenciosos.

 

Sempre do mesmo lado,

O dia todo e a noite inteira,

O vento da montanha.

 

Ao fim da tarde, caminhamos pelos arredores.

 

Os pássaros cantam

Monotonamente —

Feriado do Ano-Novo.

 

E no quarto dia nos preparamos para partir. Já nos acostumáramos àquele lugar.

 

Quintal do sítio —

A única forma geométrica

É a linha de um varal.

 

Chegamos, por fim, cansados do trânsito e do excesso de calor, no fim da tarde de quarta feira, dois de janeiro de 1991.

 

Desfazendo as malas —

As crianças se divertem

No computador.

 

 

 

Viagem à terra natal

 

 

 

No dia nove de março de 1991, por ocasião de um grande abalo, vieram fortes saudades da terra da minha infância. Deixei pelo meio o que estava fazendo e resolvi, de súbito, cruzar os muitos quilômetros de uma rota que há tempos queria percorrer de novo. Toda a minha vida transcorreu no interior. Nasci em Matão, mas a primeira adolescência passei em Guaíra, perto de Barretos. Foi para esse lado que me dirigi, quando o presente perdeu o sentido imediato e as raízes da vida pareceram arrancadas. Este é o relato que restou dessa viagem.

 

 

[de Campinas a Matão]

 

 

Quando entro na estrada, às duas e meia de uma tarde cheia de sol, lembro-me apenas das palavras de Bashô: "os meses e os dias são viajantes da eternidade. O ano que se vai e o que vem também são viajantes. para aqueles que deixam flutuar suas vidas a bordo dos barcos, ou envelhecem conduzindo cavalos, todos os dias são viagens e sua casa mesma é viagem...".

A paisagem é conhecida.

 

Aqui e ali,

Sobre os campos florescem

As quaresmeiras.

 

E até perto da serra de Rio Claro:

 

Ao longo da estrada:

"A próxima descida trará

Mais quaresmeiras em flor!"

 

Ainda em Santa Gertrudes, a paisagem natal me vem à memória, em pequenos aglomerados de ciprestes.

 

Árvores da infância —

E depois a monotonia verde

Dos canaviais...

 

O céu fica mais escuro. Começam a se suceder os pinheiros, misturados a eucaliptos, enquanto a estrada sobe em direção à névoa que parece cobrir os grandes bosques.

 

Porque não sabemos o nome

Tenho de exclamar apenas:

"Quantas flores amarelas!"

 

Bem à frente, os primeiros altos da pequena serrania, envoltos na névoa que os aumenta. Para cruzar a região, a estrada de ferro se contorce como um rio, e me lembro do poema de um imigrante japonês, espantado por conseguir ver, pela janela, as duas pontas do trem que o levava para o interior do estado, às plantações de café.

 

No meio do vale,

Como teria sentido

Saudades de casa...

 

No alto da serra, um posto de gasolina. Há muitos anos, em outra viagem desesperada e confusa, veio por aqui de motocicleta um rapaz, sob a chuva gelada de junho. O posto era apenas uma vaga luminosidade espalhada sob a neblina noturna, por detrás da qual não se via a paisagem que agora é um campo aberto sob o sol.

No entanto, da ponta das montanhas, parece erguer-se ainda mais, estranhamente, a bruma escura.

 

Que Deus olhe por todos

Os, transidos de frio, viajantes,

Corações de sonhos!

 

Depois de descer a serra, chego trevo de Itirapina. Quatro horas da tarde. Ali, sempre duas vezes por ano, viajando com a família, abandonava o rumo da terra natal, tomando a estrada que cruza à esquerda, para Oeste. E agora estava quase voltando para casa.

 

Mas olhando bem

O cafezal, na verdade,

São laranjeirinhas...

 

Passa um casal num carro. Parecem felizes, sorrindo à tarde de verão. Com simpatia acompanham este carro, cheio de música e de solitária agitação.

 

Perfume de pinho —

Nascem, no fumante convicto,

Firmes projetos de saúde.

 

A paisagem fica mais familiar. A vegetação é baixa e as casas se enfileiram em colônias, ou se agrupam em pequenas vilas, sempre ao comprido da estrada.

 

Entre as antenas

E as casas todas iguais —

Quaresmeiras!

 

Cerrados antigos,

E logo após a maré montante

Dos canaviais.

 

Como frases há muito tempo lidas, que de repente voltam e parecem dizer muito, sucedem-se confusas sensações, e mergulham aos poucos no torpor da tarde, mais quente à medida que vou descendo a serra. E o ar já está abafado quando passo pela entrada de Bueno de Andrade.

Ali costumávamos parar o carro à noite, em meio às plantações, quando o amor florescia e era ainda mais desconhecido.

 

Ali ficavam,

Também eles

Hóspedes da lua.

 

Envolvido pelas lembranças, de súbito dou por mim em frente à entrada da cidade natal, Matão, cujas casas e alguns novos edifícios naquele momento nada tinham que me pudesse interessar. Quase cinco da tarde. Penso que ainda posso ir adiante, chegar à terra da minha juventude sob a luz do dia.

 

Apenas vós,

Árvores de tronco branco,

Me garantis que retornei.

 

Nem laranjas, nem café:

Apenas canaviais

Sob um céu vazio.

 

 

[sem entrar em Matão, direto para Guaíra]

 

 

Seguindo viagem, passo por outras cidades que soam familiares. Tempo de chuva. É forte o cheiro da terra molhada. O horizonte está fechado. Chove, provavelmente, em Guaíra.

Quando chego a Colina, há grandes poças à margem da estrada.

 

Choveu há pouco —

O sol baixa das nuvens

Finas cortinas de névoa.

 

Mais adiante, finalmente, o aguaceiro sobre a estrada:

 

Chove de novo —

As vacas e os carros

Devagar, em fila indiana.

 

Depois, o ritmo da viagem, com os vidros abertos, volta ao normal.

 

Patos selvagens.

Por que iriam dois para o Norte

E dois para o Sul?

 

Estou próximo da cidade, junto ao acesso que era de terra. Na minha adolescência, várias vezes cruzei aquela estrada, ou outras como ela, à margem das quais estavam as fazendas japonesas, com as festas da colheita, os casamentos, os aniversários.

 

A princípio: "o que é aquilo?"

Mas depois...

"Campos de arroz!"

 

Mesmo molhado

Resplandece ao pôr do sol

O campo de algodão.

 

Chego à cidade ainda com a luz da tarde. Ando por toda ela. Não procuro ninguém. São vinte anos de ausência.

 

É tão pequena

E desbotada de chuva

A casa da infância!...

 

 

[de Guaíra a Matão]

 

 

Logo de manhã, em direção à estrada:

 

No terreno baldio

Ainda cheias de orvalho,

Campânulas!

 

Não há uma só nuvem no céu, que é muito claro.

 

Uma enorme garça

Voa lentamente

Ao lado do carro.

 

Ao sol da manhã,

Imóvel como se dormisse,

A coruja no fio.

 

 

[Turvo]

 

 

Às nove horas, no caminho para a terra natal, por uma estrada de chão batido, em busca do povoado de São Lourenço do Turvo:

 

Em toda a longa viagem,

Só agora encontrei

Um cafezal!

 

E ali estava:

 

A igreja branca

Sufocada entre eucaliptos —

Aldeia de minha mãe...

 

 

[Cambuí e Tamanduá]

 

 

Cruzo agora a estrada de fazenda que leva ao lugar onde outrora era o sítio de meu avô. Ali, debaixo de grandes mangueiras, festejavam-se as festas da família e as datas importantes, e todo mundo se sentava à sombra, sob os encerados estendidos para o caso de chuva.

 

Casebres todos pintados

Na fazenda Cambuí —

Como é bom estar aqui!

 

O sítio, porém, já não existe. A casa da venda, onde começara e crescera a família, era uma miúda construção de quatro águas. Agora está abandonada. Em ruínas, com as portas pregadas e cercada de capim colonião que chega até o beiral das telhas. E do lado esquerdo, onde ficava o pomar das mangueiras, apenas terra aplainada, coberta de grandes laranjais manchados do pó branco das fumigações.

 

Trezentos quilômetros

Para não vos contemplar —

Mangueiras da minha infância!

 

Andando pelos lugares agora quase estranhos, com vontade de chorar.

 

Pelo espelho do carro,

Os campos que outrora foram

A casa do avô.

 

 

[de Matão a Campinas]

 

 

Tendo ficado o resto da manhã e boa parte da tarde jogando xadrez em Matão com os velhos amigos, começo a voltar às quatro da tarde do domingo. A cidade parecia igual, mesmo que todos me dissessem todo o tempo: "veja como cresceu!".

 

Até as pequenas

Flores do espinheiro,

No mesmo lugar.

 

Finalmente, a estrada:

 

O calor sufoca.

De pouco em pouco,

Fogo e fumaça.

 

Ao cruzar novamente a região de São Carlos, cai mais um aguaceiro rápido e violento.

 

Parou de chover:

No ar lavado, as árvores

Parecem mais verdes.

 

 

Azul e verde e cinza —

Olhando bem, o céu

É de todas as cores!

 

Cheio de emoção, passo de novo pela serra de Rio Claro.

 

De uma casa branca

No meio da encosta da montanha

Sobe um fio de fumaça.

 

A serra em chuva

Sob o sol poente —

Como não agradecer?

 

Chegando a Campinas, antes de deixar a estrada, vejo pelo espelho as nuvens contra a luz do sol que vai desaparecendo. Lembro-me do poema de Susanô-no-Mikoto. Mas estou voltando sozinho, e para mim é tudo diferente:

 

Todas essas nuvens

Que se acumulam no céu do Oeste —

Parecem muros,

Mas a ninguém mais

Conseguem abrigar.

 

Após anotar esses versos, chego finalmente em casa.

 

É quase noite —

As cigarras cantam

Nas folhas escuras.

 

 

março, 2019

 

 

Paulo Franchetti é professor titular aposentado da Unicamp e pesquisador do CNPq. Entre outros, publicou, no Brasil, os livros de poemas Oeste, Memória Futura, Escarnho e Deste Lugar (todos pela Ateliê Editorial), e, em crítica literária, Nostalgia, exílio e melancolia — leituras de Camilo Pessanha (Edusp) e Estudos de literatura brasileira e portuguesa (Ateliê); em Portugal, publicou uma edição crítica da Clepsydra, de Camilo Pessanha (Relógio d'Água, 1995), a antologia As aves que aqui gorjeiam — a poesia do Romantismo ao Simbolismo (Cotovia, 2005) e o ensaio O essencial sobre Camilo Pessanha (IN-CM, 2008). Parte de seus trabalhos críticos está disponível em paulofranchetti.blogspot.com.br.

 

Mais Paulo Franchetti na Germina

> Encarte