filha de Duchamp, sou cânone

do agora

 

 

este meu rap no fundo é um soneto

como este agora é branco e também preto

yin e yang sou tudo e também nada,

navego canoa embriagada.

 

este soneto no fundo é um rap

não há conceitos, só um grande gap

vou escrevendo meus dias no ar

construindo andaimes sobre o mar.

 

sigo amassando a maçã dessa Eva

apodrecida, que quase me leva

minhas liberdades, as arredias.

 

minha linguagem não instrumental

é sim meu instrumento musical.

esta é minha colheita desses dias

 

 

 

 

 

 

suco gástrico

 

 

a tampa do liquidificador

guarda sujeira nos cantos

mais difíceis de alcançar

com a bucha e nem

o detergente de coco

e seu aroma e espuma branca

conseguem alvejar esses escuros

mínimos escondidos.

 

minha cabeça,

a tampa do liquidificador.

 

 

 

 

 

 

menos comprimidos

 

 

 

[poema-imagem de O LIVRO de água | livro-objeto-exposição realizado com silvana rezende]

 

 

 

 

 

 

descaso

 

 

o destino que me valha.

você deixou seu fósforo aceso

dentro de minha vida de palha.

 

 

 

 

 

 

da ilha de java

 

 

 

[poema-imagem de O LIVRO de água | livro-objeto-exposição

realizado com silvana rezende: clique aqui para ouvir]

 

 

 

 

 

 

domingo

 

 

contemplando [planto]

nuvens

 

 

 

 

 

 

na praia com clarice

 

 

 

[poema-imagem de O LIVRO de água | livro-objeto-exposição

realizado com silvana rezende: clique aqui para ouvir]

 

 

 

 

 

 

poema didático meio óbvio de uma mulher cansada sobre um homem que deve estar cansado

 

 

um homem nasce de uma mulher

 

um homem escreveu que uma mulher nasceu de sua costela

um homem escreveu que deus teve somente um filho homem

um homem escreveu que este filho homem único de deus nasceu de uma mulher virgem

um homem escreveu que este único filho santo de deus foi seduzido por uma mulher

um homem escreveu que a mulher que seduziu este único filho de deus era uma prostituta

um homem sempre sonha com uma prostituta

 

um homem não é um príncipe

um homem não é um príncipe

 

um homem é obrigado a se apresentar ao exército aos 18

um homem acredita que a partir dos 18 tem a função de proteger sua nação

um homem a partir dos 18 e mesmo antes acredita sobretudo em seu pau

um homem acredita que seu pau protegerá sua nação ou que a partir dos 18 tem a função de proteger seu pau

um homem não aprende a arrumar uma casa fazer comida cuidar de um bebê

um homem não aprende a proteger ninguém

 

um homem não é um príncipe

um homem não é um príncipe

 

um homem deve trazer dinheiro pra casa

um homem que traz dinheiro pra casa é dono de um dos maiores poderes do mundo

um homem sai de casa pela manhã em busca de poder e volta à noite faminto

um homem quer uma mulher cheirosa quando volta pra casa à noite

um homem quer um jantar gostoso quando volta pra casa à noite

um homem não pode ser incomodado por crianças

 

um homem não é um príncipe

um homem não é um príncipe

 

um homem que traz dinheiro pra casa e mesmo que não, dá murro nas costas de uma mulher

um homem que traz dinheiro pra casa e mesmo que não, dá tapa na cara de uma mulher

um homem que traz dinheiro pra casa e mesmo que não, ameaça com uma faca uma mulher

um homem que traz dinheiro pra casa e mesmo que não, empurra os seios de uma mulher

um homem que traz dinheiro pra casa e mesmo que não, enfia seu pau à força no cu e na boceta de uma mulher

um homem bate numa mulher especialmente com os espinhos

 

um homem não é um príncipe

um homem não é um príncipe

 

um homem que é proprietário de um carro que ele mesmo dirige e lava é mais homem

um homem que dança solto é menos homem

um homem que grita grosso e bate na mesa é mais homem

um homem que respeita mulheres e especialmente outros homens é menos homem

um homem quando assiste programa de luta na tv do bar é mais homem

um homem quer um jantar cheiroso um homem quer uma mulher gostosa

 

um homem não é um príncipe

um homem não é um príncipe

 

um homem queimou mulheres em fogueiras que ardem ainda no seio das famílias felizes

um homem ensina ao seu filho homem que beijar uma mulher à força, é bem macho e

lhe mostra bocetas na internet

um homem proíbe uma mulher de ficar num ambiente só com homens

um homem vê perigo pra uma mulher num outro homem

um homem conhece um homem

um homem não conhece uma mulher

 

um homem não é um príncipe

um homem não é um príncipe

 

um homem se entristece

um homem se cansa

um homem se embrutece

um homem perde a ternura

um homem se embriaga

um homem se mata e mata

sua mulher

 

um homem nasce e, às vezes, renasce

 

 

 

 

 

 

asa

 

 

o barco viking

palíndromo

no meu coração

traduziu sempre

o meu não estar

nem aqui

nem lá

 

 

 

 

 

 

rearrumação

 

 

minha geladeira,

resolvi colocar debaixo da amendoeira

do quintal do vizinho,

só pra mudar as coisas de lugar

 

minha cama,

na beira do mar,

e meu sofá,

arrastei pra praça,

onde sento e como pipoca

e vejo tudo que passa.

 

meu armário, pintei de roxo

e deixei a porta bem aberta.

ele já não guarda mais nada.

liberta.

deixou de ser gaiola.

 

minha vitrola,

que se entrosa bem com o meu pufe,

está ao lado dele agora,

tocando músicas no meio da avenida,

por entre os carros.

 

joguei, além, muita coisa fora:

roupas, papéis, talheres, divã

 

esta manhã,

acordei cansada de tudo como está

e resolvi simplesmente,

mudar as coisas de lugar

 

[clique aqui para ouvir o poema]

 

 

 

 

 

 

vésperas

 

 

nasci chorando, não sorrindo, assim

vestida de sangue, não de manga e maresia, assim.

no caminho desses anos tenho

nascido de novo, muitas vezes. uma mecha

branca começou a brotar em minha cabeça, bem acima do terceiro

olho e tenho

me perguntado se não sou um unicórnio.

tenho dúvidas sobre o que sou.

e quando se nasce de novo tantas vezes, é mais difícil saber.

nascer não é fácil.

mas é bom. parto

flutuando pra mais um dia não amniótico, entre

pastas de dente, medalhas enferrujadas e marujos que me acenam por detrás

de janelas entreabertas.

a vida, ela explode.

cheia de sangue, manga, maresia, nesses dias de choros, risos, riscos.

eu nasci amanhã.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Karina Rabinovitz é poeta. Nasceu em Salvador/Bahia, em 1977. Experimenta e realiza interações entre poesia, artes visuais e som, em parceria com a artista Silvana Rezende, criando livros-objetos, exposições de arte, instalações audiovisuais e intervenções poéticas e urbanas. Tem cinco livros de poemas publicados e um infantil: mas é que eu não sabia que se pode tudo, meu Deus! (2014); O LIVRO de água (livro-objeto com poemas escritos à mão e fotografados, 2013); poesinha pra caixinha [de fósforo] (livro-objeto artesanal, feito à mão, 2012); livro do quase invisível (2010) e de tardinha meio azul (2005). O infantil é Pela bahilha afora eu vou bem sozinha (2014). O LIVRO de água se expande numa exposição de arte, realizada no Museu de Arte Moderna da Bahia, em 2013 e no Centro Cultural BNB-Cariri/Ceará, em 2014.