Chegou um negro

 

 

Chegou um negro,

a memória do mundo estremece.

 

Os outros poderão se esconder

num nome falso, em um silêncio.

Mas um negro, não,

até o silêncio denuncia um negro.

 

Sim, é ele.

O ser que passou

por matemáticas provações.

Mais, menos, multiplicação,

divisão, desumanidades

em infinitesimais potências,

porcentagem, financiamentos.

De onde vem o dinheiro

dos navios negreiros, quem

enriqueceu com o trabalho do negro?

Houve tentativas de tornar o negro um zero.

 

Quando um negro sabe

o que é um negro,

nada pode assustá-lo.

Dor alguma o impede

de rir, de cantar, de dançar

e de pensar. É no movimento

que sua força se impõe.

 

Um negro

que sabe de si e dos seus

compreende que ele é feito

de água, de vento, de folhas,

de fogo, de terra, pedra,

mas principalmente

de outros negros.

 

 

 

 

 

 

A luta

 

 

O doce nada brando

da cana-de-açúcar

contrapondo ao sal do suor.

 

Caía o açúcar branco

sobre o corpo negro.

 

Ao sol duas foices:

a cana cortava o negro

o negro cortava a cana.

 

 

 

 

 

 

A escassez

 

 

Na frialdade de julho

a vida vivida aos pedaços

tudo contido, tudo guardado.

 

Vem a primavera, e nada muda

permanece a estranha economia

o que se dá é sempre tão escasso.

 

Depois vêm os dias quentes

as pessoas com menos roupas

dias propícios aos transparentes.

 

Bastava um gesto, um sorriso,

mas não, é sempre menos, e se morre

com as palavras presas na garganta.

 

 

 

 

 

 

Mísero esqueleto

 

 

O amor, os livros, os textos,

a saúde, os amigos, a vida.

Quero dar conta de tudo

mesmo lançando meus

braços-de-polvo

sou insuficiente,

sou pouco.

 

 

 

 

 

 

Presença

 

 

A dor estava ali,

do tamanho de um inseto,

minúscula, mas incômoda.

 

Se fosse de um tamanho

maior, seria possível

arrancá-la.

 

Ali estava a dor, do tamanho

de um inseto,

abrindo buraquinhos.

 

 

 

 

 

 

Sorvete

 

 

Na porta da funerária um homem chupa sorvete.

A tristeza de alguns

alegraria o homem da funerária,

mas ninguém morre.

 

Dia quente. Nenhum corpo gélido.

Na porta da funerária um homem chupa sorvete

e espera.

 

 

 

 

 

 

Porto Alegre

 

 

A tarde era azul

e as pessoas vestidas

de compromisso

andavam pela

rua da praia.

 

 

 

 

 

 

Presentes

 

 

                            Para a Sílvia

 

 

De todas as amadas,

és a amada sem poema.

Não tens e não terás um poema.

 

Se pensavas ao contrário

do que te falo, te frustro.

Há presentes que não posso te dar

( e não tenho vontade de dá-los ).

 

Um carro, um apartamento, viagens

ao redor do mundo, o Sol, único ser

poderoso do universo e um poema.

Nada disso posso te dar.

 

Mas como na história de Oscar Wilde

( O Rouxinol e a Rosa ), se precisares,

leva a minha vida, minha única vida.

 

 

 

 

 

 

Presente ou Meu estrangeiro

 

 

                            Para Akin Fróes

 

 

Uma espécie de invasão

(vem de fora e dentro está?),

do corpo, das perguntas,

da casa e dos pensamentos.

 

À espera dos bárbaros, poema

de Kavafis, me faz lembrar.

Vem vindo, se vê a poeira,

rumor, escutam-se os sons,

sem hordas, nu, sozinho.

 

Diz um provérbio africano:

para aprender é preciso esvaziar-se.

Vem, pode vir, que estou prepara(do)

para ser mais-menos, menos-mais.

Estranho cálculo, que menos sendo

mais serei. Mais eu, mais teu, Akin.

 

 

 

 

 

 

Quase um encontro

 

 

                            Para o Paulo Moacir

 

 

Um lagarto

irrompe pelo concreto.

Entra no pouco espaço

de verde que ainda

existe na cidade.

 

Contra muitas possibilidades,

é quase surreal.

(um Shane, de os Brutos também amam)

Não se movimenta apressado,

move-se num quietume.

 

Um lagarto cruza

por um homem,

que o vê, fascinado.

Para três ou quatro coisas

esse homem ergue a cabeça.

 

Na cidade duas ou três

coisas têm importância

para esse lagarto.

 

Não é um duelo.

Cruzam e se reconhecem

(homem-lagarto).

 

Ambos resistentes,

exemplares em extinção

(exilados).

 

 

 

 

 

 

Balada dos que têm medo

 

 

Não. Iremos perder.

A metereologia anuncia

fortes chuvas,

eles são mais de 300,

e nós somos só nós,

e temos muito medo.

 

Ainda assim é não!

 

Seremos o magricela, de Drummond,

do Oliveira Silveira, o negro de fogo,

e não há forma de se escapar

para fora da possibilidade do soco

e de outros golpes  que virão.

 

Mas por que não desistem?

 

Porque dentro de nós

algo nos diz que a nossa luta é justa.

 

 

 

 

 

 

Mancha

 

 

Deve ser duro atravessar

o Canal da Mancha.

Água gelada, distância — muro.

 

Nunca soube de que um negro

tentasse atravessar o Canal da Mancha.

 

Dizem que os negros

nadam mal:

fibra muscular pesada,

falta de piscinas.

São poucas as medalhas

dos nadadores negros.

 

Nem sequer ouvi

falar de que um negro

tentasse atravessar

o Canal da Mancha.

 

Bobagem, também

nunca soube de alguém

que cruzasse o Atlântico

tão profundamente

como um negro.

 

Para atravessar o Atlântico

é preciso muito fôlego,

e até mais do que sete vidas.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Jorge Fróes nasceu em Porto Alegre e é formado em Letras e Literatura. De 2000 a 2001, editou com Cezar Dias o jornal "Fenestra Literatura", que teve entre outros entrevistados Oliveira Silveira e Moacyr Scliar Participou da Antologia de Poetas Brasileiros, org. Christina Oiticica (Shogun, 1985); Roda de Poesia Negra, org. Oliveira Silveira (1993); Revista Negra, número especial da Porto & Vírgula, org. Ronald Augusto (1995); Revista Callallo: African Brazilian Literature (1995); Revista Continente Sul Sur, edição dedicada à poesia (1998); Poemas no Ônibus nas edições 2001, 2002 e 2003; Consciência Negra do Brasil: Os Principais Livros, org. Cuti (Luiz Silva) e Maria das Dores Fernandes (Mazza Edições, 2002); O Melhor da Festa – Vol. 3, org. Fernando Ramos (Casa Verde, 2011); Estamos Quites, primeiro livro individual de poesia, org. Carmem Presotto e Eliane Marques (Vidráguas/Escola de Poesia, 2015); Sopapo Poético/Pretessência, org. Lilian Rose Marques da Rocha (Libretos, 2016); Poema Negros e outros nem tantos, org. Sidnei Schneider (UMESPA, 2019).