©kakuko
 

 

 

 
 

 

 

 

marginal

 

 

tem gente que só serve pra te foder

de tudo que é lado, por todos os ângulos, poros, orifícios, avessos e perspectivas

tem gente que nem pra isso

 

 

 

 

 

 

do que (só) vem de dentro

 

 

"Toda linguagem comunica a si mesma".

Walter Benjamin

 

 

garrafa ao mar

mais oferenda

menos socorro

 

outra costa

abraça o arremesso

 

mensagem-vaga

maior de todos os retornos

 

 

 

 

 

 

one-take

 

 

na maçã, o sangue só encapa

roído

pelotão avança

sobre a carne branca

 

na maçã, um segundo banquete

ruindo

o fóssil imaturo

de ossatura orgânica

 

a maçã, cadáver asseado,

some sem espernear

sem se esparramar

sem exasperar ao ranger da turba

sem atrapalhar o trânsito

 

 

 

 

 

 

o disfarce do ovo

 

 

é bom, ovo,

é bom que tu existas

não pela clara, nem pela gema

mas a possibilidade viva

 

é bom, ovo,

o teu mistério

muito além do colesterol

a autossuficiência na proteína

 

sem a gosma da placenta

és livre desde sempre

desta dor umbilical

e deste estigma

de proteção familiar

escandalosamente exaustiva

 

é bom, ovo,

bom que existas

com essa soberania

que a panela desmente

na gordura quente

em que te fritas

 

 

 

 

 

 

fios desencapados

 

 

ensinei as mãos dadas

revelei surpresas

ensaiei afagos

tive entusiasmo e dedicação

de professora primária

confiei nos resultados

 

admiti as recuperações

como tropeços de quem aprende

anos (de)formando as expectativas

problemas com a teoria?

ensinamento ou aprendizado?

 

não vejo

pressinto o perigo

o eletrochoque

a iminência do incidente descuidado

 

perdi o fio

não sei voltar

do novelo não restou quase nada

embaraço as pernas pelas armadilhas

constante e demoradamente

espalhadas pela casa

 

quem as amarrou?

como desa(r)má-las?

 

 

 

 

 

 

encosta

 

 

avança a água na baía

ponteia grãos entorpecidos

vagas de falange vão à praia

e ela

(conquanto constele os sedimentos)

só entende essa parte

no adensamento da lambida

 

 

 

 

 

 

ódio à cereja (do bolo)

 

 

quem gosta da cereja do bolo?

a cereja do bolo coroa o dissabor

fica lá, vibrando seu vermelho-gelatina em baba de açúcar

obscena, insinua o crime de um jeito escandaloso

 

detesto a cereja do bolo

nem gosto de cereja ela tem

complementa o desnecessário,

faz a gente perder a linha, tomar a iniciativa, ir além

 

com glacê e recheio a gente conta

ela não, a cereja é excesso, manha, capricho

faz a culpa, mina o prazer

e põe a perder o melhor pedaço

 

 

 

 

 

 

ora, ora, ora

 

 

e não é que cair no mundo

coincidia com estabacar?

 

 

[poemas de taipografia. Martelo Casa Editorial, 2019]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Fernanda Marra nasceu em 1981, em Goiânia. É mestre em Letras e Linguística (UFG) e doutoranda em Teoria da literatura (UnB), estudando a obra poética de Alejandra Pizarnik na relação com seus diários íntimos. Seu primeiro livro de poemas, Voo livre, foi publicado em 1996. Entre 2008 e 2015, manteve o blog "Marés e ressacas", dedicado à publicação de seus poemas. Tem poemas na revista Escamandro. Além de taipografia, livro que reúne as produções do blog e as mais recentes da autora, está no prelo furonofluxo, também pela Martelo.