"quero o poema vazio de palavra

: abismo e náusea".

C. P. Rosa

 

 

CLAUSURA

 

 

da clausura

ouvia o badalo do sino

o falo ereto

contra a parede rústica

da cela

: doze vezes — e adormecia

 

 

 

 

 

 

FALO

 

 

tanta fala

sem falo tanto

que a ejaculação

é um abismo

estéril de devir

a escorrer

no terço em oração

 

 

 

 

 

 

COBIÇA

 

 

ouço o reco-reco

mesmo mergulhado no silêncio da cela

toco o terço e oro

mas o desejo é de tocar uma punheta

a unha anseia por epiderme

e sangue

a língua cobiça ser borboleta

ou lesma

nem o jejum afujenta o desejo de carne

a fome presa no estômago

como uma mulher a assediar o recluso

com seu ventre

e a vontade de ser puro e Santo

: mas a tal fé nem prenhe!

 

 

 

 

 

 

Deus!

 

 

tenha pena

deste servo que tem nas virilhas

o calor

das lavas incandescentes do inferno...

Mãe!

interceda junto ao pai

e junto ao Filho e ao Espírito Santo

que o fogo arde sua chama

na alma

sejam rápidos

que nos testículos há revolução de milhões

e diante de mim

quem confessa arde por um homem justo...

(São João da Cruz, irmão, me perdoe...)

 

 

 

 

 

 

LAMBER

 

 

nunca tão ávida: a vulva

— quanto minha língua —

era eu que sofregamente a lambia

até o último badalo do sino

a me acordar

abraçado ao travesseiro

tão úmido quanto meu esperma

no nácar do lençol

 

 

 

 

 

 

GOZO

 

 

eu dentro de você

você em mim até a última gota do gozo

o cão ladra na rua

o cristo crucificado na parede

— é cego e surdo —

no púlpito o coroinha acerta o vinho e a hóstia

enquanto você nua a me sussurrar

: fica tão bonito com essa batina!

 

 

 

 

 

 

MONSENHOR

 

 

me lembrei

ainda agora — que tempo

é esse? —

nas desoras

o gemido do Monsenhor

na cela

todo em gozo diante do olhar

da escuridão

(talvez acreditasse que Deus
nessa hora

descansava dois fiéis...)

 

 

 

 

 

 

DEUS

 

 

cruci

fixo a mão

na cruz

credo após

tolos

criado mudo

Deus

cala dor

mente e SOS

sobra

 

 

 

 

 

 

BATINA

 

 

hoje

deixo a batina

ando nu

descalço e faminto

toquei a vulva

com o toque delicado

de um Santo

ela salivava

como meus lábios

ambos

sedentos nos tocamos...

(como duas borboletas em voo)

desnudados dos hábitos

onde se olhava: nácar

duas auréolas róseas

e uma floresta negra

assim ensimesmado

com tal simplicidade

onde uma única pinta

recolhi-me no terço

e orei e orei e orei

o falo aprisionado

e sedento de sexo

diante do silêncio

quanto mais orava

úmida e sedenta

uma vela queimava

me atraía o fogo

me desculpe Mãe

Pai me perdoe

atirei-me ao pecado

e gozei e gozei e...

hábito sobre o móvel

o terço gasto no chão

a perda do ritmo

a impotência e o riso

(um oceano nácar...)

 

 

 

 

 

 

CELA

 

 

a cela fria

a noite fria

fria manhã

: faço minha mala

guardo todo o frio como se bloco de gelo

junto ao crucifixo

e sigo a luz que não encontrei aqui

 

 

 

 

 

 

SUNGA

 

 

usava a batina

com uma sunga de proteção

assim aprisionava

tanto a carne quanto o desejo

e colocava a hóstia em cada língua

carnosas e sanguíneas línguas

que retornavam

em lentos e sensuais movimentos

até o fechar dos lábios

fornicava durante a comunhão — é verdade

imagens que levava comigo até a noite

quando me serviam como ceia e ejaculação

 

 

 

 

 

 

ORGIAS

 

 

nevou

nas orgias ovarianas do vento

o feto navega

nas unhas de São João da Cruz

os discursos

seguem a bússola dos pervertidos

masturbar uma banana

não é diferente de descascar orações

pago uma profissional

como quem compra ovos na feira

fritar é outra história

gosto de cozidos de vagens e couves

e um vinho tinto

para lamber glandes e clitóris virgens

depois um bom livro

Salomão, Sade, Bocage ou Hilda Hilst

que pornographos

é arte e não sua mente maliciosa

e pervertida

 

 

 

 

 

 

ORAÇÃO

 

 

oremos

irmãos oremos

todo santo dia

oremos

dia santo ou não

oremos

por orgasmo farto

na cama

por comida farta

na mesa

irmãos oremos

todo santo dia

oremos

dia santo ou não

oremos

pelo gozo na boca

e no sexo

pela saúde plena

irmãos oremos

oremos

irmãos oremos

todo santo dia

oremos

dia santo ou não

oremos

pelo vinho e pão

na mesa

pelo lençol macio

na cama

irmãos oremos

todo santo dia

oremos

dia santo ou não

oremos

pelo retorno à visão

oremos

irmãos oremos...

 

 

 

 

 

 

CONFISSÃO

 

 

era currada

por todos diariamente

até desmaiar

ou o médico dar ordem

de parar

acordava na cela

toda mijada

um ardor na vagina

que passou

depois de semanas

a uma anestesia

estranha

até o dia bendito

em que o tenente

assumiu o comando

seria o único

a partir de então...

meu herói

por mais estranho

que pareça

um cheiro horrível

um bafo

que me lembrava

naftalina

— o mesmo cheiro do religioso

que orava o terço

e me olhava obliquamente ao acordar —

mas o tenente era o único

e para mim um presente do acaso

as infecções

em vias baixas me levaram

para o hospital

no mesmo dia em que um filho

de coronel

tratado como doente

sem sê-lo

também saiu da prisão

sumiram

os prontuários dos dois

foi o médico

que me pegou pelo braço

— pensei: mais um a me currar —

mas não

levou-me até os fundos do hospital

e me sussurrou

: menina

saia por aquela porta e não olhe para traz

para os militares e para a prisão

você deixou de existir!

e realmente

nunca mais fui em lugar algum

o passado sempre presente e insano

me devolve à cela — diariamente —

toda mijada

e morta desde então

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Constâncio Negaro, natural do agreste pernambucano, admirador de Padre Cícero, veio para o Sul ainda jovem para estudar em colégio de religiosos. Formado em Filosofia e Teologia, atualmente não segue qualquer orientação religiosa, vive de um modo cigano, atualmente, em Maputo. Publicou "Poemas sobre a fé" no site Cronópios, outros poemas sobre a fé na revista Mallarmargens, e no Coletivo Dulcinéia Catadora. Dividiu seus poemas de um modo muito particular com a escritora e amiga Valderez Nepomuceno.