Moldura

 

 

o Eclesiastes era poeta antes de Cristo

 

no século vinte-e-um os dias sob o sol são muitos e longos apesar de curtos

 

chinelos e pés envelhecem devagar

os iphone envelhecem rápido

os pardais desaparecem para todo sempre

 

sob a pressa com que amadurecem maçãs e morangos

os autorretratos espocam como festa de fim de ano

 

: quantas vezes ao dia eu sou a fotografia no instagram?

 

o bonito o bom o nobre o luxo e as cidades sonhadas —

onde estão as outras fotografias ?

 

eu mesma olho demasiado as telas

 

e nem percebo os espelhos

 

esses me amedrontam mais que deviam

 

não há nada de novo sob os meus sóis

 

além dos pés de galinha, o cinza na pálpebra inferior, as rugas da boca visíveis

 

esse ar de exílio do país que pensávamos ter na mão

 

mas sob meus pés eu mato dragões todos os dias

 

não amamento ninhadas mortas

 

sob o cansaço do mesmo sol do Eclesiastes

o mel é raro e pouco

 

o inóspito, meu vizinho.

 

 

 

 

 

 

Alteridade

 

 

tudo em mim precisa do outro

 

os poros, as mãos, o cerebelo, a curvatura da espinha dorsal , o coração

 

a chama existe quando existe quem chama

 

se rogar é verbo

a escuta é onde começa o outro

sujeito tão diverso e igual a mim

 

ouça-me, as rosas também são rosas porque existe tudo o que não é rosa

 

ouça-me

até mesmo se sentir o espinho.

 

 

 

 

 

 

Amigos

 

 

meus amigos estão tristes

 

mesmo os que sabem viver e conhecem a alma das coisas

o sal, a pimenta e o céu

o copo nadir figueiredo e a caneta bic

 

mesmo os que caminham na beleza ou amam o carnaval

 

meus amigos estão tristes

 

entre cervejas artesanais

ou a noite passada insone, entre um ou outro fio branco no cabelo

entre saudades sem nenhum consolo no vinil

 

meus amigos fazem muitas perguntas e escutam o fogo

 

com as mesmas mãos.

 

 

 

 

 

 

Angústia é uma palavra tão lenta

 

 

                            "Prefiro rosas, meu amor, à pátria". - Ricardo Reis

 

 

todo poema que escrevo faz pergunta sobre pergunta

 

não deixa pedra sobre pedra

 

desfaz os cimos, renasce sumidouros, revolve terras secas,

os pântanos

 

todo poema que escrevo faz mais lágrima que clarividência

 

indispõe o esôfago

a bílis o mediastino

 

depois só depois

vejo rosas mais rosas

 

meu filho diz que ando triste

você sabe que não sei fingir.

 

 

 

 

 

 

Chuvas de outono

 

 

as paineiras florescem no outono

sem serventia alguma

 

sem serventia alguma, as rosas

 

uma drogaria a cada esquina

espreita os que passam como um vocativo de néon

 

antes fossem poemas em pergaminhos acendendo os clarões de Agualusa

 

troco um frasco de medicamentos por um livro

um unguento por uma mão na base da nuca

uma cânfora pelos olhos seus

mais alongados que os meus

 

o fogo das palavras é mais bonito que os conselhos que me deram

 

quisera percorrer as cidades com balas de alcaçuz no bolso e nenhum medo

 

disseram que atrás da rua do fórum tem um café e um silêncio

um silêncio dominical

mais necessário que um sanduíche

 

nos dias cinzas as amenidades bastam

os seus olhos me contando neblinas antigas

 

a mina que romperá em barão de cocais faz meu semblante envelhecer mil anos

 

nada em mim será jovem

nada em nós será jovem

bastante

 

a máquina do mundo de Drummond

não deixará pingos nos ii

 

poderei cantar pra Maria em seu sétimo aniversário?

 

o movimento é a ordem, meu amor 

vive esse rumorejo como se fosse o último beijo

 

eu deito em campos de capim dourado quando escuto sua voz

 

dourada é a cor que apascenta meus cios

 

nos campos a lógica não existe mais

lavo com água cristalina sua destemperança de ontem

 

tamanho afago das águas

— nem cristo foi tão calmo —

você rememora os vendilhões do templo

 

e beija pela undécima vez minha alma intumescida.

 

 

 

 

 

 

O poema grita

 

 

um poema pode ter cheiro de cola

leishmaniose visceral

chinelo havaiana surrado

bafo de muitas bocas

aquele cheiro acumulado de portas que jamais se abrem

 

cheiro de moço deitado sobre papelão

jogado da loja de móveis

moço deitado

sobre o mês de fevereiro

inteiro

e sem carnavais

 

a unha escura do moço é um poema, o amarelo do branco do olho é um poema, a história que conta o moço é um poema

 

a camisa customizada pelo tempo e as velhices do moço, tudo poema

 

as ruas abertas das cidades latinas

e o país inteiro

caberá no poema

 

no grito do poema:

 

olha eu aqui ó

 

e os novos doutores do poder mergulhados em opiniões

 

do que seja saúde/educação

 

não entendem nada do que seja poema

 

olha eu aqui ó.

 

 

 

 

 

 

Das pedras

 

 

nasci tão branca e de olhos verdes que nem o bisavô genovês,

mas sonhei ter nascido com a pele preta

no cabelo um ninho de guaxe

um lábio forte

um seio robusto

 

aprendi também as coisas feias

com a tradicional família mineira

coisas que não ouso contar

minha terra com ruas de paralelepípedos

ensinou propriedade, religião, família

tudo pedra e pedra e pedra

 

tudo bruto

 

as horas suaves eram fakes como propaganda de margarina nas manhãs de domingo

 

importava mesmo é o destino capital, a casa grande, o sobrenome

 

aprendi a escrever não para pacificar

falando dos diamantes, das diásporas, dos dialetos, da flor do cerrado,

da elegância altaneira dos urubus

logo após as carniças

 

escrever é morrer um pouco a cada dia

interrogando amor e dano.

 

 

 

 

 

 

Calendário

 

 

no modo contínuo chega-se a setembro

 

paga-se as contas, conhece-se os novos usurpadores do país, repara-se o cheio das luas, afaga-se rapidamente o cão, compra-se maçãs e alhos

 

alguém sempre dirá que o ano passou mais veloz do que devia

 

foices do tempo — eu diria —

 

com tal voracidade não está a salvo a voz da filha, a saudade de um pai, a encadernação de um clássico recebido, as madeiras de lei da casa,

nem mesmo a tatuagem no peito

 

o amor — esse substantivo que habita substâncias —

escreverá faltas e faltas

 

em versos livres, chegaremos ao ponto onde da exaustão saímos

 

hora sobre hora,

provisórios.

 

 

 

 

 

 

Alento

 

 

nos tempos do holocausto

 

Baudelaire alentou Walter Benjamim

 

Plotino alentou Guimarães Rosa

 

eu desenharei poemas e poetas

nos tempos de sacrifício

 

com semblantes de ternura indizível

 

os olhos luminosos, a boca sempre a dizer palavra de ouro

 

as mãos fortes das avós com aliança de viúva

 

o corpo de uma negra que formou quilombo em gerações

 

as escritas de conceição evaristo e maria carolina de jesus

farão maiores as noites

as festas, as revoadas dos pássaros,

a política das mulheres dos homens

dos justiceiros

 

um poema existirá para que todos os céus provoquem olhos de mirada

 

e caia chuva sobre os ossos

 

a palavra desígnio é fluida.

 

 

 

 

 

 

A viscosidade dos peixes

 

 

o texto me escapa como um tucunaré se solta das mãos

na beira do são francisco

como o scroll down do instagram

 

como seus olhos na quarta-feira

a atenção ausente no jantar de ontem

 

escapa o texto como a faísca da fornalha da infância

e o raio fúlgido do meu país de outrora

como a ordem das cidades me escapa

 

e a nuvem rosa em ipanema e o sol posto sobre o vidigal

como escapa ferreira gullar e seu filho

como escapa o homem amado

 

o texto me escapa como o mês de fevereiro

 

e o colibri na flor que enfeita o cerrado

como o esquecimento aos cinquenta anos

 

como folhas pisadas de um velho ipê na calçada

 

peixe que não pesco

a hora que quero

que não aprendi a pescar em ordens racionais

de anzol e isca

 

persigo alfabeto e palavra

e sonho

 

escrevo no smartphone

escrevo em campos elétricos

com um ou dois dedos de cada vez na tela de cristal

é que escrevo

não mais em cadernos de pauta azuis

 

escorro

palavras de líquido

como tudo no mundo largo

é

diria o senhor polonês

ou o velho budista sorridente

 

quase nada

 

 

 

 

 

 

Os poemas resistirão

 

 

no tempo das mentiras

serão esquecidos: o instante de ver as nuvens, a demora dos oceanos,

as longas despedidas,

os lentos olhares

 

sim e os carteiros

os carteiros todos esquecidos

 

os oceanos além de plástico terão alguns peixes atordoados

habitantes solitários das bolhas

 

não se usará ponto e vírgula

e mil palavras serão postas no limbo

 

pobre das abelhas e das bromélias vermelhas

 

você também, eu também

até os sinos.

 

O amor travará batalha genuína

entre serpente e serpentina.

 

 

 

 

 

 

Amor

 

 

Me disseram que

palavra e alma

tem o mesmo significado em tupi-guarani

 

em sua alma

a palavra

é dança, canto do canário, manhã de sol, um menino recém-nascido nos braços

 

a extensão cadenciada de todos os mares,

júbilo, folia de reis

 

em sua alma

almíscar e anis-estrelado

silêncio e ária na corda sol

seda e céu

 

até

a sombra.

 

 

 


 

 

 

 

[©imagens cig harvey]

 

 

 

Daniella Guimarães de Araújo (Leopoldina/MG, 1963) vive em Sete Lagoas/MG. Poeta, autora do livro produzido de forma independente Conto de um amor intermitente (2017) e do livro de poemas (in)visibilidades (Desconcertos Editora, 2019). Tem publicado poemas no Facebook e em algumas revistas eletrônicas. Funcionária pública, sanitarista, trabalha na área de saúde, onde desenvolve o projeto Saúde e Literatura e o Cartas para Guimarães Rosa.