©till westermayer
 

 

 

 
 

 

 

 

Epistemologia da composição

 

 

Em um caderno de notas

postumamente publicado

com o título Cultura e Valor

(Edições 70, 1980, p. 34)

escreveu Wittgenstein:

 

"Penso de fato com a minha caneta,

pois frequentemente a minha cabeça

não sabe nada

sobre o que minha mão

está escrevendo."

 

 

 

 

 

 

Diante dos retratos de Alain Laboile

 

 

se observada

sob esse ângulo

com essa luz oblíqua

esse recorte

exato

é possível que esta

perigosíssima

e sabidamente

traiçoeira

espécie animal

até pareça

inofensiva

ou mesmo

graciosa

 

mas cuidado

isso é parte

do seu jogo

parte

das suas

artimanhas

 

 

 

 

 

 

História natural dos polvos

 

 

lendo um jornal de divulgação científica

 

 

"seu cérebro enorme

genoma muito mais complexo do que o humano

sistema nervoso altamente sofisticado

corpos camuflados

eis apenas alguns traços dos polvos

que parecem ter surgido do nada

há 270 milhões de anos

na cena evolutiva terrestre"

"suas transformações genéticas não são localizáveis

em nenhuma forma de vida preexistente

eles parecem vir do futuro ou

mais realisticamente

da amplidão do cosmos"

 

em matéria de polvos

abandone as explicações ponderadas

as hipóteses plausíveis

a segurança do método

tente fazer sentido

da ideia de que o polvo

é um bicho ex nihilo

um animal ex machina

 

tente fazer sentido

da ideia de vida

como intrusão ou acaso

da irrupção

incalculável

do futuro

ou quem sabe de uma explosão

a partir do nada

 

 

 

 

 

 

Outra história natural

 

 

via Drummond

 

 

Társios praticam morte voluntária.

Mamíferos superiores embriagam-se regularmente.

Pandas procuram a extinção da espécie.

Amplas camadas de vida oceânica fogem da luz.

Moscas e humanos são geneticamente semelhantes.

Nossa história também é natural.

 

 

 

 

 

Arrancar a manhã

 

 

O esplendor da manhã não se abre com faca.

Manoel de Barros

 

Will there really be a morning?

Is there such a thing as day?

Emily Dickinson

 

 

Se

ja-

mais

houver

manhã

 

Uma

única

singular-

íssima

manhã

Ela será ar-

rancada

à unha

a dente

à faca

 

Aurora

tecida

a grito

e à rinha

de galo

 

Crisálida

cuja seda

só se

abre

a rasgo

 

Ave

tão frágil

para rachar

sozinha

o ovo

 

 

 

 

 

 

Duna de Cresmina

 

 

para fazer um poema sobre Cresmina

bastaria escrever seu nome explorar

as reminiscências com nomes gregos

(como com Taormina, de que se conta

teria sido arrasada pelo tirano Dioniso

restando apenas o antigo anfiteatro

de onde se pode ver

imperioso

o Etna)

enumerar algumas espécies de plantas nativas

(como a raiz-divina e a sabina-das-praias)

estabelecer relações suficientemente difusas entre tudo

e nós mesmos

etc.

 

mas direi apenas que

tão logo chegamos a Cresmina, vindos de Lisboa

descobrimos que havia ali um centro de pesquisas

onde se pratica

o que chamaram

despretensiosamente

Interpretação da Duna

 

 

 

 

 

Rue du Maréchal Joffre, Toulouse

 

 

a partir de um ou dois versos

de Hans Magnus Enzensberger

 

 

uma casa simples

em um bairro proletário

quartos amplos

quase sem móveis

um pequeno jardim

sem flores

bicicletas velhas

mas perfeitamente funcionais

um copo de água fresca

sobre a mesa de pedra

leituras conjuntas

antes e depois do sexo

as únicas palavras

que trocávamos

 

 

 

 

 

Camera obscura

 

 

1.

Recuas do espaço da luz e da sombra.

Minha palavra te alcança e imobiliza

por um átimo. Vejo-te.

 

 

2.

Não sigas o meu rastro, não

a minha palavra, não

a tua memória. Ignora

o meu nome, abandona:

quem eu fui.

 

 

3.

Não vês o horizonte de onde

te veem. (Não vês horizonte algum.)

Não vês o exato ponto

de onde te tornas visível.

 

 

4.

Dentre todas as formas de aparecer,

apenas uma é a tua.

Dentre todas as formas de ser,

apenas uma te cabe.

 

 

5.

Escapar da mirada que vê um rosto em cada coisa.

Escapar da mirada que vê o próprio rosto em cada coisa.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Daniel Arelli (Belo Horizonte, 1986) é professor, poeta e tradutor. Doutor em Filosofia pela Universidade de Munique, atualmente é professor visitante da UFMG. Seu primeiro livro de poemas, Lição da Matéria, foi vencedor do Prêmio Paraná de Literatura 2018 e será republicado pelas Edições Macondo, no primeiro semestre de 2020.