as faxineiras do edifício

 

 

surpreendentemente

 

(não obstante os dez mil, quatrocentos e trinta e um degraus, os oito mil, trezentos e vinte metros quadrados de piso, as quatrocentas e quinze vidraças e as três toneladas de lixo à espera de varrição, transporte e limpeza)

 

cantam...

 

 

 

 

 

 

Um quadro de hopper

 

 

Sem os ruídos da paisagem

este seria um quarto

de um hotel qualquer

de uma cidade qualquer

de um país qualquer 

do planeta

 

sem os sinais viventes da paisagem

este seria um quadro de hopper

não seria uma poema de dalila

 

 

 

 

 

 

Terapia intensiva

 

 

A ceifeira ronda

à volta das máquinas

ao redor dos tubos

no ar infectado de dor

— sombra indesejável

 

A ciência brinca

experimenta, põe e tira

mórbido esconde-esconde

fingida presença de Deus

 

Um corpo respira

(a máquina opera o milagre)

um corpo não mais senhor

do gesto, do gosto, do querer

corpo, cobaia, objeto

à mercê do progresso

 

A ceifeira espera

e sabe da hora

A ciência não

 

 

[De Retratos Falhados .São Paulo: Escrituras, 2008]

 

 

 

 

 

sonho (re)corrente

 

 

                            "Pus o meu sonho num navio

                            e o navio em cima do mar;

                            — depois, abri o mar com as mãos,

                            para o meu sonho naufragar".

                            ("Naufrágio", Cecília Meireles/Alain Oulman)

 

 

um rio, estreito e veloz

:

na superfície, aconchegada

(líquido conforto)

eu mesma, barco

nele navego

 

tudo é sensação e velocidade

as margens próximas

(quase tocáveis)

a paisagem borrada

(não há contemplação

nem há tempo)

 

corre o rio, corro com ele

 

rua lamacenta

agora, o rio

nítida, a paisagem

(desolação)

 

onde recomeça o rio?

muito distante daqui

dizem-me

sem mensurar distâncias

nem me olhar nos olhos

 

 

 

 

 

 

homem-tração

 

 

                            "Assim devera eu ser

                            de patinhas no chão,

                            formiguinha ao trabalho

                            e ao tostão".

                            ("Formiga Bossa Nova", Alexandre O'Neill/Alain Oulman)

 

 

recolhem

latas, caixas, vidros, papéis

(miserável quinhão

no latifúndio consumista)

 

brancaleônicas figuras

recolhem e carregam

(penas — carga brutal)

carregam e caminham

caminham e descarregam

(elas próprias, descartes

 

menos-valia

não armazenável

ração restrita à hora

incerta e presente)

 

 

[De estranhas formas de vida. Dobra/Alpharrabio Edições, 2013]

 

 

 

 

educação eletiva

 

 

                            "Alguém te contempla

                            Desde antes do tempo começar".

                            (Murilo Mendes, em "Menina em Quatro Idades)

 

 

a tia

 

(sempre haverá uma tia, na

vida de todos os seres viventes

não qualquer tia

mas aquela, para além do sangue,

a eleita

antes mesmo de o ser

aquela que contempla

e enxerga o escuro

aquela que sabe

da dor e da fome

e, garras à mostra

afugenta intrusos

acode

agasalha

acalenta

afinidade eletiva

antes mesmo de

qualquer começo)

 

sim, a tia

como esquecer?

 

 

 

 

 

 

bagagem

 

 

                            "de lado a lado

                            a casa é uma viagem"

                            (Irene Lucília Andrade)

 

 

haveria de ser grande e bonito

o baú encomendado ao tio

madeira coberta por folhas de flandres

tachas reluzentes e batique florido

(abrigar os pertences

resistir às intempéries atlânticas

e, por fim, servir de móvel

no destino novo)

 

ali, na austeridade da arca

a casa

reduzida ao essencial

 

 

 

 

 

 

casa

 

 

                            "Vendam logo esta casa, ela está cheia de fantasmas".

                            (José Paulo Paes, em "A Casa")

 

 

morta a dona

morta a casa

 

morta a casa

morta a memória

 

morta a memória

morta a memória da memória

 

morta a memória da memória

o vazio da casa

morta

deixada morta

pela morta que a deixou

 

 

 

 

 

 

tempo polido

 

 

                            "lá não se aprende a pedra: lá a pedra,

                            uma pedra de nascença, entranha a alma.

                            (João Cabral de Melo Neto, em "A Educação pela Pedra")

 

 

pelas calçadas do funchal

(em pedra e arte calcetadas)

passaram meus ancestrais

pés descalços / solas gastas

corpos descuidados

a polir o (seu) tempo

sem atinar com ele

na paisagem entranhados

 

solas novas na pedra gasta

em cuidados, agora percorro eu

as marcas esquecidas, indícios

da pedra primeira

da pedra pedra

fundadora

 

 

 

 

 

 

a ilha à minha porta amarrada

 

 

                            Amarro à tua porta o Mondego/Regresso-me./Paz?

                            (Murilo Mendes, em "Murilograma à Clara Rocha")

 

 

o regresso

(ainda que

da memória seja

o mergulho

vertical e fundo)

é paz impossível

 

recordar é voltar

(e

perder-se)

inquietantes caminhos

névoa no que era luz

 

a ilha

(à porta

permanentemente

amarrada)

janela

(aberta para dentro)

passaporte

para o que sou

 

 

 

 

 

 

chegada

 

 

                            Para a frente era só o inavegável

                            Sob o clamor de um sol inabitável

                            (Sophia de Mello Breyner Andresen, em

                            "Navegavam sem o Mapa que Faziam")

 

 

onze foram os dias

enjoo, sarna e tédio

terceira classe

paquete santa maria

 

da terra prometida

primeiro, o recife

amarelos inaugurais

 

aos emigrantes, o

delimitado espaço

do porto, aos turistas

a cidade (entre)vista

do cais

 

(aos que vinham

para o trabalho

ver o trabalho

era o limite)

 

via-se

:

corpos gingantes, a estiva

torsos negros azuis suados

 

e o cheiro despudorado

do abacaxi a anular o resto

 

(o brasil tinha cheiro

e era de ananás)

 

 

[De solidões da memória (Dobra /Alpharrabio Edições, 2015]

 

 

 

 

 

desobediência

 

 

os acontecimentos

batem à minha porta

 

estridentes, insistem

batem

batem

 

se não os atendo/atento

insinuam-se pelas frestas

mandam sinais

fumaça

notícias

megabaites

e

batem

batem

 

se me finjo de morta

explodem a vidraça

estilhaços, prestes

a romper

aneurismas herdados

 

contrariando o mestre

(para que a língua não trave

para que não me arrependa)

deles construo poemas

e

com certo engenho

alguma poesia

 

 

[Poema inédito em livro]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Dalila Teles Veras. Nascida em Portugal em 1946, vive no Brasil desde a infância. Autora de diversos livros de poesia, dos quais se destacam: a mulher antiga (Alpharrabio Edições, 2017); SETENTA anos poemas leitores, — poemas escolhidos por 70 leitores por ocasião dos seus 70 anos (Alpharrabio Edições, 2016), solidões da memória (Dobra/Alpharrabio, 2015) e retratos falhados (Escrituras, 2008). Dentre outros, lançou dois livros reunindo suas crônicas (A vida crônica e As artes do ofício) e dois diários (Minudências e Diuturnos). Dirige a Alpharrabio Livraria, Editora e Espaço Cultural em Santo André/SP desde 1992. Mais em seu site e blogue: dalila.telesveras.nom.br | dalilatelesveras.zip.net.