©mari shimizu
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Em tempos difíceis, sonhar com o pai pode ser uma autêntica dádiva. Na noite passada sonhei com o meu, provavelmente inspirada numa cena ocorrida quando eu tinha uns treze anos. Estávamos no adro da igreja da cidade onde nasci e conversávamos debaixo de uma palmeira imperial. Papai ria, no sonho, e parecia muito bem-humorado. Mas foi muito rápido, desses sonhos que deixam mais a energia e a emoção das imagens do que propriamente uma história. Quase um flash.

Meninas do interior amadurecem mais depressa, dizem. Mesmo que isso não ocorra, começam a frequentar bailes muito cedo, pois em cidades pequenas, onde todos se conhecem, os pais confiam muito na força do controle exercido pelo meio social. A partir dos doze eu já frequentava festas e — mais do que isso — organizava bailes.

Naquela época não existia clube na cidade e só havia duas maneiras de dançar: algumas famílias abriam as portas de suas casas para as famosas "furrupas", e bastava entrar e arrumar um par. Não se servia nada nessas ocasiões, nem bebida nem comida. Era a dança pela dança mesmo, ao som de LPs; e os bailes propriamente ditos, menos improvisados, com música ao vivo.

Com mais duas amigas de idades próximas, resolvi organizar um grandioso baile para comemorar certo primeiro de maio. O processo requeria uma disposição acima da média. O grande salão de recreio do grupo escolar (ensino fundamental) servia como pista de dança e lugar do conjunto musical, que hoje é chamado de banda. A escola não dispunha de cadeiras. Para isso, a prefeitura municipal nos cedia o seu caminhão (só havia um) e íamos, de casa em casa, recolher cadeiras emprestadas. Os nomes dos proprietários eram escrito com giz branco embaixo do assento. Não me lembro se os registrávamos em algum papel. Quando o caminhão estava cheio a atividade terminava, independentemente do número de cadeiras. O prefeito só nos cedia o carro e os serviços do motorista duas vezes, na coleta e na entrega.

A sorte é que aos doze anos usualmente a coluna não dói, as pernas funcionam às mil maravilhas, e carregar cadeiras é quase como carregar lenços de seda. Fico imaginando aqueles esforços nos dias atuais e sinto vontade de rir.

Esse baile foi memorável, pois pela primeira vez ouvi a música "Yesterday", que achei incrivelmente bonita. Os Beatles estavam no auge. Mas interessante mesmo foi o que ocorreu antes do baile, que o tornou tão especial.

Nós éramos muito preocupadas com a presença de uma moça de outra cidade, que gostava dos nossos bailes, cujo apelido era Pitucha. Não sei se era linda como pensávamos, mas a achávamos maravilhosa: loura, alta, cabelão comprido, corpo violão. Que ela tinha muitos atributos, não tenho dúvida. Na nossa imaginação, se ela fosse ao baile não sobraria nenhum rapaz interessante para dançar conosco. Isso nunca ocorreu de fato, mas temíamos a sua presença, imbuídas da ideia de que santo de casa não faz milagres.

Dias antes iniciávamos novenas visando alcançar a graça da ausência de Pitucha. Íamos ao cruzeiro, situado no alto de um morro, só para rezar. No baile em questão, em que investi muito, fiz um sacrifício mais radical: resolvi subir sozinha e de joelhos a imensa escadaria da igreja matriz. Não tinha a menor ideia da fragilidade das articulações e nem poderia supor a gravidade dos problemas que mais tarde teria nessa área.

Meus joelhos já estavam doendo quando papai apareceu no adro da igreja, de repente, e me perguntou o porquê daquela atitude inusitada. Quando expliquei, ele, com ar divertido, me convidou para tomar guaraná no bar em frente. Um homem original, muito desligado para algumas coisas e extremamente sensível para outras. Nessa história, entrou de cabeça. Lembro-me do seu jeito manso ao servir-me guaraná, dizendo olhe, minha filha, é só uma questão de aritmética. Pense comigo: muitos rapazes irão ao baile. Os da nossa cidade, outros de cidades vizinhas, haverá muita gente. Por mais bonita que seja, Pitucha é uma só. Ela não pode dançar com mais de um ao mesmo tempo, não é? Faça as contas comigo. Como não haverá par? Meninas bonitas, educadas, alinhadas. Quem não vai querer dançar com vocês? Deixe de bobagem, não repita mais esse tipo de promessa. Vá para casa estudar, ler. Seus joelhos já estão meio escalavrados, passe mercúrio-cromo, logo que chegar.

Deixei a promessa pela metade, pedi perdão a Nossa Senhora e segui a orientação do papai. No dia do baile, fui cedo para o grupo escolar e encerei o imenso salão sozinha, com cera vermelha e um pó que chamávamos de vermelhão, que manchava tudo. Usei os joelhos novamente, além do escovão na hora de dar o brilho. Foi tudo muito corrido e durante o banho não me lembrei que os joelhos mereciam atenção especial naquela noite. Pus um vestido de organdi azul-claro, crente que estava abafando, e fui para o baile. Horas depois uma colega me perguntou, no banheiro, o que era aquilo nos meus joelhos. Só então fui ver que ambos tinham duas grandes rodas vermelhas.

Como não podia fazer nada, pois as manchas só sairiam com muito sabão, bucha e talvez álcool, voltei para o salão e fingi que não vi. A iluminação me favorecia e continuei a dançar. Foi um grande baile, tão bom que, passados cinquenta anos, continua na minha memória.

Se Pitucha foi ao baile? Sim, belíssima como sempre, com um vestido vermelho maravilhoso, de tafetá. Usava uma flor no cabelo. Filha de médico, para os padrões da época era considerada por nós uma moça rica. Decidi que não ficaria olhando para ela e ponto final. Dancei todas as músicas, sempre pensando nas palavras de papai. Conheci um rapaz muito simpático, de olhos cor de folha seca, que foi meu par constante em muitos bailes.

Nunca mais ouvi falar de Pitucha, cujo nome verdadeiro não sei. Desconheço também onde se hospedava, quem era seu parente na cidade, como aparecia e logo depois desaparecia sem deixar rastros. Penso nela muitas vezes, com curiosidade. Seria tão bonita, afinal? Corresponderia à imagem que tínhamos? O que teríamos visto mesmo nela, para tal idealização? Ficou o nome, Pitucha, para sempre vinculado a Afrodite. Pitucha, Pituchinha, a moça que me fez subir de joelhos grande parte de uma imensa escadaria.

 

 

 

março, 2019