©frantisek krejci
 

 

 

 
 

 

 

 

Entre a incerteza da luz

E a certeza da noite

Reside meu triste país

Que a cada dia

Entardece como uma fruta esquecida

No pé

Rodeada de moscas.

 

 

 

 

 

 

Aprendemos com as aves

a bicar o vão mole entre as pedras,

à procura de alguma maciez

que possa encorajar a caminhada.

Às vezes encontramos paina;

às vezes, nada.

 

 

 

 

 

 

Encarcerei na memória

a imagem da cadeira

como um colo

a esperar tua volta.

 

 

 

 

 

 

DÚVIDA

 

 

Não me é dado saber

o que sente a bordadeira

quando arremata o bordado.

Era tudo planejado

ou o risco é sempre um risco

em que um cisne —

feliz no sereno lago —

pode acabar afogado?

 

 

 

 

 

AO MEU PAI QUE JÁ MORREU

 

 

Um misto de sépia e utopia

Atravessa o tom do dia:

Do que se queria vivo,

Como matéria passível

De breve ressurreição,

Restam apenas os traços

Unidimensionais

Enfeixados numa data:

O dia do dia dos pais.

 

Bem diferente das mães —

Que admitem nuances,

Noites, tardes, véus, romances —,

Dos pais há que ser o dia

(Talvez o meio do dia)

A marca mais contundente,

Sem nada de transcendente.

 

Há que ser marcado a ferro

O longe dos pais que foram:

Esse longe tão sem jeito,

Longe que fica longe

E ao mesmo tempo no peito.

 

Não é o longe-viagem,

Não mais o longe pertinho

Pra ver poço na fazenda,

Fazer muro pro vizinho.

 

Não mais o longe do pai

Que seleciona o anzol

Pra mais uma pescaria...

 

Que nos pescava de volta

Com o balaio lotado

De prata em si semovente:

Os peixes que em família

Comeríamos em festa.

 

Tanto medo de engasgar...

 

Hoje o engasgo é bem outro.

Não tem espinho de bagre,

De piaba ou lambari:

É um espinho do "não"

Que atravessa o "aqui".

 

Não é o longe do exílio.

É o longe de quem traz:

A morte, loba feroz,

Que se entrega a domicílio.

 

Mas como se vai entender

Esse tipo de penhora

Que entrega e leva embora?

 

Foi nesse longe tão longe

Que meu pai se alojou.

 

 

 

 

 

 

Eu nasci leve,

Um pássaro comum,

Mas me apedrejaram o alto da cabeça

Com notícias pesadas:

Virei pássaro atordoado,

Que despenca a cada tentativa de recompor a realidade do voo.

A cada queda, a garganta se enche de areia

E meu canto está cada dia mais áspero,

Um desconcerto de vidro moído,

Sem claridade — só farpas.

Ultimamente,

Despejaram um óleo negro e denso

Sobre minhas asas:

Estou aqui,

Sem conseguir levantar voo.

Até que um bicho qualquer me devore,

Estou aqui,

Papel colado à contingência plana,

Monologando.

Só minhas penas profundas

Me ouvem.

Sou um rascunho amassado,

Desenhado por um ornitólogo teimoso

Que se afogou

No mar do Brasil.

 

 

 

 

 

 

Existem dias

Em que falamos de coisas banais:

Tomar um trago,

Passar roupa,

Ouvir um disco novo de blues,

Torrar amendoim

Para esperar as visitas.

Hoje não,

Hoje está tudo vetado.

Não há no interstício das horas

Um único espaço livre

Para ler,

Assobiar,

Chupar cana,

Tratar dos cachorros,

Ouvir rádio.

Hoje não há sequer tempo ou vontade

De alinhar na parede

Aquele retrato que teima em pender para o lado

Incomodando nossa noção de simetria.

Hoje o retrato está em carne viva

E pinga sangue que nunca coagulou

Ou vai coagular.

É parar diante dele

E como não temos noção de engenharia,

Sofrer a falta de artifício

Que nos permitiria pulá-lo

Pra encontrar vivo, do outro lado,

O que não deveria ter morrido

— pelo menos a alvura dos seus ossos —

Mas, ah, meu deus de letras minúsculas,

Nem a gaveta conseguirá contê-lo

Porque lhe doerão todos os ossos

E a carne

E a lembrança

Se ele sair dessa posição de retrato

À qual se acomodou há mais de cinquenta anos.

Não há rigorosamente nada a fazer

Além de chorar,

Porque até a mortalidade lhe foi negada.

 

 

 

 

 

UM BOI REFLETE

 

 

O boi acorda

E muge três vezes.

Sabe que logo

Homens tristes

Estarão almoçando.

Aproveita

Para estender aqueles olhos sempre úmidos

Sobre o verde

E se pergunta

Se o mundo acaba

No horizonte

Ou se a mesa de jantar

(tão ali, meu Deus!)

É o altar

De todos os sacrifícios.

 

 

 

 

 

No cerne do amor,

nada começa,

nada termina.

Persiste, ilesa,

a neblina.

 

 

 

 

 

 

SIGNOS

 

 

Lamber tua língua quente

para aprender histórias

que não ecoem no ouvido

de qualquer outro vivente.

 

Eis-me determinado

a ser dono absoluto

dos mais devassos enredos

que enlaças sempre a medo.

 

Interessam-me os relatos

do que te marcou a carne

mais do que a carne em si

desnudada de malícia.

 

Beber histórias na língua,

sem palavras, só saliva,

como um tigre aprisionado

pelas listras de um bordado.

 

 

 

 

 

 

Um dia,

Minha mãe deixou de aniversariar: morreu.

Sem sofrimento,

Sedada.

Eu não consegui ver o sepultamento.

Fiquei distante,

Ouvindo o barulho da terra sendo jogada,

Depois as pás de pedreiro riscando os tijolos.

Tenho certeza

De que ela conseguiu escapulir

Entre um punhado de terra e outro

Para dar um pulinho até a casa,

Ver se tinham aguado as plantas

("Por que nunca fazem direito, meu Deus?")

Passar o dedo no tampo da mesa

("Sabia... dá pra escrever o nome".)

Checar se já tinha caído o dinheiro da aposentadoria

("Pra mim tá muito bom!")

Quando voltou ao cemitério,

Todos já tinham ido embora

E ela certamente pensou:

"Faz tempo que eu não vejo um sol tão laranja.

Cor de sossego iluminado".

Para viver, nunca mais precisou de festas,

De mantinha nas pernas,

De chamados,

De afofos,

Das pequenas quedas cotidianas

Que nos reforçam a condição humana...

Só precisa da nossa memória,

Em que — eu, pelo menos —,

A vejo com um sorriso feito esse da foto,

Como se dissesse:

"Vocês precisam aprender tanto, ainda!"

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Carlos Emílio Faraco: sou professor aposentado. Escrevi vários livros educacionais. Tenho 71 anos (em 2019). Aos 60, peguei essa mania boba de tentar fazer versos e escrever ficção. Um dia passa.