tem muita gente aí?

não tem não

não?

não sei, fala tu

aposto que tem

não sei, fala tu

tá, então não tem

tu quer saber a verdade?

fala aí

verdade de verdade?

fala aí

aqui não tem ninguém. não tem nada. eu não queria te falar, não queria que fosse eu a te falar (entende?) que a verdade é que aqui não tem nada

não?

não

é sério?

é sério

e tu me fala com essa cara de pau — com essa desfaçatez — que não tem nada, não tem ninguém, que essa miséria é uma verdade de verdade?

devo confessar que sim

então tu confessa

é, confesso: aqui dentro não tem nada

então preciso de um tempo, me deixa pensar sobre o assunto

pense o tempo que julgar necessário, investigue bem dentro da sua cabeça, mas a verdade é que aqui não tem nada, que aqui não tem ninguém. e nunca teve

 

 

 

 

 

 

Ao sol de meio-dia e tal

 

 

Eu finjo que não sei porque esse cara grita

De pé, bem no coreto, meio-dia e tal. E

quanto mais ele grita, mais ele grita

Eu faço que nem é comigo, mas é

 

Geral fala assim: porra, que cara mais babaca

Uma merda dessa e ele ali gritando

Que cara babaca, né não, que cara babaca

Se foi da vontade de Deus, fazer o quê?

 

Tinha mais era que ficar quietinho

Separar camiseta, calça, tênis e

depois de um tempinho, voltar para o batente,

 

fazer o quê? Mas esse cara ali gritando,

meu Deus, fala tu. De pé, bem no coreto

Esse cara está fazendo o quê?

 

 

 

 

 

 

Azul 13

 

 

bipes e cliques na minha cabeça

bipes e cliques

zumbido de esquadrilha chegando

(até devagar, mas) chegando

o tom hanks

o tom hanks molestando uma menina

o urro da fera

uma caverna de cinco

seis horas de extensão a nado

espetadas no corpo

de bipe em bipe a perna esquerda treme

bipe em bipe

lá do alto o basculante não chega a dizer qualquer coisa do tempo do lado de fora

não chega a dizer

do boxe ao lado só se ouve o rugido da fera

de quando em quando o grasnado da fera

muito acima dos bipes e cliques

é só isso que se ouve

o berro da fera

cada vez mais alto

os lúcidos e orientados

a coisa mais difícil de se ver num lugar como aqui

os funcionários

do começo até fim do corredor

só se ouve o gemido da fera

cada vez mais alto

 

 

 

 

 

 

Uma pinoia

 

 

isso que é tão importante hoje em dia

— que é fundamental —

que na verdade sempre foi, não tenha dúvida

isso que até deveria, mas não nasce em árvore

anda tão em falta, meu Deus, anda muito em falta

e que falta faz para a gente (meu senhor, minha senhora)

que falta que faz

o dia que começarem a prender por causa disso

ou matar

um dia ainda começam a matar tudo que é gente que faz

ou melhor

que não faz como deveria fazer

e aí vai ser triste demais

um bando de gente morrendo por deixar de fazer

se não me acredita pergunta por aí

pergunta na igreja

pergunta na birosca

melhor, pergunte na internet

talvez, quem sabe

mas do jeito que caminham as coisas

do jeito que esse mundo vai

acaba que não sobra ninguém

(meu senhor, minha senhora)

vai tudo para o saco, pode crer

e então tu vai fazer o quê?

anda, fala

tu vai fazer o quê, meu camarada?

 

 

 

 

 

 

X

 

 

um dia eu vi na rua o Denzel W

vinha ele e seu amigo Spike L

os dois pela calçada sob um viaduto

os dois caminhando num gingado de dança ou de marcha

os braços se agitando em movimento de facão

metidos em ternos colorido-chocantes

com chapéu de aba larga com umas penas espetadas que nem setas

por baixo do chapéu, o Denzel com o cabelo vermelho de alisado à pasta

o Denzel metido em golpes

o pai atropelado por um trem da Ku Klux Klan

a mãe confinada pois maluca

o Delroy L também como amigo do Denzel

(o Delroy que se parece com meu próprio pai)

o Denzel com dinheiro com festa com uma loura infernal

depois o Denzel preso

Denzel com raiva

atrás de grades de touca de meia na cabeça e rezando ajoelhado cinco vezes ao dia

agora o Denzel noutro tipo de terno

com sobretudo

agora noutro tipo de chapéu

com cachecol

com óculos

com gravata borboleta

sempre de cinza ou de preto

Denzel dando uns pegas na Angela B

(a Angela de chamego chamando o Denzel de meu Malquinho)

e uma turma dando ouvidos ao Denzel

e o Denzel com raiva

e a turma com raiva

(tanto que a turma foi virando multidão)

e uma outra multidão também com muita raiva

(a multidão de deboche chamando o Denzel de mr. litlle)

então dezesseis ou dezessete tiros

então queima-roupa

então fim

 

 

 

 

 

 

Trocando uma ideia com o gringo que veio para cá sem querer e que ainda está muito presente entre nós

 

 

estão dizendo por aí que tu morreu

pois é, estão dizendo

e aí?

e aí nada

mas fala pelo menos como foi a viagem

como foi a viagem... uma merda, né?

tão ruim assim?

avalia: uma caixa de sapatos só que grande, noventa cem pessoas dentro dela, aquele cheiro, aquele calor de sufoco, gemido dia e noite, cada um na sua língua estrangeira, toda hora era um que jogavam pro mar, fala tu

mas tu conseguiu, não conseguiu?

fala tu

mas quanto tempo?

o tempo eu já não tenho condição

e depois?

depois outra caixa de sapatos, só que não balançava tanto, ou balançava, só que por dentro e não por fora, e mais gemido

sei, mas e depois?

depois a pé daqui até Minas

a pé?

isso, até Minas

mas a pé?

isso eu quase que não tenho condição

e sobre as crianças? o que que tu pode me dizer sobre as crianças?

deus abençoe

pode crer, deus abençoe

avalia?

e depois?

depois ainda outra caixa de sapatos, parecida com a primeira e parecida com a segunda, aquele cheiro, aquele calor de sufoco, gemido de dia e gemido de noite, cada um na sua língua estrangeira, toda hora era um que jogavam pro mato, avalia, e as mãos sangrando, e as costas sangrando, e essa desgraça foi por muito tempo

entendo

entende mesmo?

entendo

entende nada

mas depois te libertaram, não foi?

se tu tá dizendo

libertaram sim, primeiro as crianças, não foi?

se tu tá dizendo

e já faz um tempo isso, não faz?

é, já faz um tempo

dizem por aí que o tempo cura, que as coisas se ajeitam, agora ficou tudo equilibrado, não ficou?

 

 

 

 

 

 

Tô ligado nessa tua conversão

 

 

foi justo naquele momento entre o fim do trailer e o começo do filme

naquele instante logo antes do rugido do leão da goldwyn-mayer

naquele segundo foi que deus em pessoa acabou lhe aparecendo

aí já não sei se falando em hebraico

ou se em pé a seu lado ou se em frames na tela de forma que apenas pra ele

mas deus em pessoa dizendo jacó, meu querido, se eu fosse você...

e mais não disse, não se sabe se por falta de vontade ou se por parte do mistério mesmo

mas jacó prosseguiu assistindo à sessão até o fim, se decidindo de uma conversão

voltando pra casa ele cruza com a barreira da polícia

e o polícia lhe pedindo identidade

identidade eu não tenho, seu guarda, mas afirmo que meu nome é joão: joão da silva

e o polícia dizendo que mané joão, rapá, tô ligado que teu nome é jacó, não nega não que assim piora

e jacó se insistindo joão, joão da silva, tô vindo agora mesmo de uma boa entrevista, tu sabe né seu guarda, a crise tá casca. e daqui é metrô. depois trem. depois ônibus. depois moto-táxi. tu sabe né seu guarda?

e o polícia falando cala a boca, rapá, tô ligado nesse teu nariz enorme, no teu chapéu muito preto, na tua roupa muito preta, isso por acaso é roupa de entrevista de emprego? e nesse teu cabelinho de mola, nesse teu jeito de falar, isso por acaso é jeito de falar com autoridade? eu te manjo, vagabundo, eu tô ligado

então o polícia socando jacó no camburão

depois um rolezinho com jacó no camburão

depois babau

 

 

 

 

 

 

O Vingador Negro

 

 

fui no boteco ver o jogo do mengão

em casa é bom mas eu prefiro mesmo a rua

o dono do boteco me sorrindo me dizendo tá por conta da casa meu parceiro

o velho que morava no boteco me apontando me falando tu mandou muito bem meu garoto

uns vascaínos me gritando muito irada sua capa mermão muito irada

saí correndo do boteco

no caminho cruzei com tumulto manifestação gás de pimenta cassetete

a imprensa ninja me cercando me pedindo uma exclusiva

a multidão bradando viva meu negão muito obrigadx

saí correndo do povão

passando pela banca o cara do gibi pedindo autógrafo

o maluco que mora na calçada do hortifrúti dando um salve

a namorada do grandão elogiando meu cabelo black minha roupa colante meu gingado

o grandão me dando quatro cinco bordoadas

a namorada do grandão mandando usar meu raio meu escudo invisível

o grandão me dando outra só pra garantir

um filho do porteiro de pentelhação

tirando selfie pra postar no facebook no instagram

perguntando do meu golpe do poder da garra da pantera

perguntando da força que é mais forte do que sete oito homens todos juntos

eu dizendo não sei moleque eu juro que não sei

 

 

 

 

 

 

É isso um homem?

 

 

isso fedendo esse fedor insuportável

essa coisa preta com lanho na casca

com sangue jorrando

com sangue pisado

essas patas com correntes de ferrugem

essa criatura com essa carapaça que é queloide e mais queloide

aquilo pendurado no tronco, é isso um homem?

com uma algema apertando o pescoço

se é que isso é um pescoço

com essa magreza de cadáver se arrastando a chibatadas pelo meio desse bando

mirando concentrado pra um ponto no meio do nada

empilhado um em cima do outro num grande buraco cavado no campo e não dá pra saber

se são pernas se são braços

gemendo um gemido de bicho, é isso um bicho?

isso atrás dessas grades

dessas cercas de arame farpado

isso apanhado nessas redes é o quê?

 

 

 

 

 

 

Etéreo

 

 

sei que eu deveria estar com meus amigos de dama na praça

nós que somos os inofensivos do baile, eu tô sabendo

com meus companheiros que não somos rivais perigosos

que estamos fora de combate

a mim ninguém chateia, você sabe

nem a eles, ninguém chateia

ninguém perde tempo com gente que fica na praça com a dama e com os pombos

com gente que é deixada esquentando no sol

era lá que eu deveria, você sabe

no banco de pedra na praça

na mesa tabuleiro de pedra na praça

era lá que eu deveria

 

 

 

 

 

Memorial

 

 

fiquei sabendo que em Nantes (na França) tem um porto

e que perto desse porto há um museu

 

ao longo da calçada, centenas de plaquinhas brilhantes com nomes escritos

Le Juste

L'Union

Le Saint Jean Baptiste

La Felicité

Brésil

 

depois se desce pra uma espécie de porão

parece que abaixo do nível do mar

parece que sentindo a ressaca do mar

parece que escuro

 

logo na primeira parede

cravada na madeira ou no concreto, uma palavra

mais pro fundo outras poucas palavras

uma aqui, outra lá

mas todas a mesma: libertad

 

depois umas séries de números

milhares

milhões

registros de coisas

mulheres, crianças, homens

de sacas de açúcar

 

registros que cá no Valongo não há

pode ir lá conferir se há marcado

se no quadro mercado de escravos

procura lá pra ver se há

 

aquele quadro de mil oitocentos

que está dentro do livro da escola e que é muito provável que esteja no acervo de um outro museu

se no registro da tela há risco

se há breu

vê lá se há

 

não há não

nesse quadro não há nada

 

 

 

 

 

 

De coisas sendo lidas nas paredes de um banheiro público

 

 

eu vejo muita graça em como a gente lida com umas coisas

e veja bem que eu disse coisas, não disse?

eu vejo muita graça quando a gente pensa que tem jeito de fazer acordo

quando a gente imagina que tem como se virar pra ela e dizer

só não me venha com surpresas, combinado?

só não me venha na hora com a vovó de braço dado — a minha avó

não me apareça aqui com o Walter Benjamim

nem me apareça com o Bourdain

por mais que me pareça que o Bourdain tivesse sido um borderline interessante

por mais que eu achasse engraçado pensar na vovó se engraçando pra cima do Benjamim

não quero dar de cara com o Mitsuharu Inoue, deus me livre

mesmo que eu soubesse quem diabos fosse o Mitsuharu Inoue

(no meu quintal de japoneses não cabe ninguém além do Kurosawa, e além do cara que fazia o Ultraman)

com todo respeito, eu desejo distância

alguma espécie de gastro-resistência

eu quero pelo menos trezentos milhões de quilômetros

sucede que o lugar onde me ponho as calças é uma casa — a minha casa, talvez

e nos fundos da casa tem um cemitério

e eu pude ler no cemitério um epitáfio que dizia alguma coisa como morre uma mulher mas continua havendo

e acontece que há golpes na vida, eu não sei

não sei se ali tem muita gente, se não tem nada (entende?)

de minha parte eu prefiro uma terceira pílula

uma pílula sem cor nenhuma

uma que a gente engula e depois durma

um sono sem sonho, nem bom nem pesadelo

apenas durma

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Carlos Eduardo Pereira nasceu no Rio de Janeiro, em 1973. Graduou-se em História pela UFRJ e em Letras pela PUC Rio, na habilitação Formação do Escritor. Enquanto os dentes, seu romance de estreia, foi publicado em 2017 pela editora Todavia e foi semifinalista do Prêmio Oceanos e finalista do Prêmio São Paulo de Literatura.