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um rio me atravessa

o mesmo rio

 

que molha de sal

o teu rosto

 

um rio me atravessa

em carne viva

 

até o osso

 

um rio me atravessa

um rio me transborda

 

o que não cabe em nós

as nuvens

 

tem de sobra

 

 

 

 

 

 

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as manchas nas paredes não repare — se movimentam

num silêncio que não ousamos  — uma gaveta que range

uma palavra que falta um abraço que lhe ofereço

ainda que seja pouco — quando essa noite comum a todos

cai no teu colo — feito um estranho

 

 

 

 

 

 

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há riachos

imensos

há riachos

imensos

todo dia

morrendo

todo dia

nascendo

nas rachaduras

do tempo

 

 

 

 

 

 

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eu te empresto um pouco da minha paz de quarta-feira

essa paz assimétrica assim como as guerras

o sol do meio dia no seu rosto cansado um poema

um pedaço

de pão — o alquimista chinês inventando a pólvora

assim por acaso

eu te empresto um pouco da minha paz de quarta-feira

e atravessamos a rua carregando os paralelepípedos

de domingo — um alívio

 

 

 

 

 

 

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de qual substância é feita a nossa distância

de qual substância — entre o raio e o  trovão

um silêncio

nos alcança

 

 

 

 

 

 

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pode um coração artificial pode se apaixonar assim como nós os românticos irreparáveis — ele me responde que nunca mais conseguiu fazer funcionar os automóveis modernos com injeção eletrônica em dias de nevasca — antes bastava adicionar um pouco de gasolina ao carburador — bombar o pedal e dizer — vamos lá — só mais essa vez — alguém nos espera do outro lado da cidade olhe — nos olhos de um desenganado — de um velho amigo — de um desconhecido — um assassino um miserável — de um novo amor você — jamais vai saber qual deles tem um coração de plástico — luz e matéria são irmãs — irmão — o carvão perdoa o fogo e o escuro — ilumina as pérolas

 

 

 

 

 

 

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ainda que eu não saiba

rezar — as nossas mãos

conversam

 

 

 

 

 

 

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pela manhã — no espelho mais antigo que meus olhos — ensaio pequenas

mentiras para o nosso encontro — o travesseiro de cimento será substituído logo após o almoço — consultaremos o horóscopo do dia para os dilemas cotidianos — a música eletrônica dos aparelhos será desligada sem maiores danos — para escutarmos as rajadas de vento da tempestade

subtropical que se aproxima — com força suficiente para atravessar a serra do mar e nos alcançar por volta das dezesseis e quarenta — trazendo algum alívio segundo a meteorologia

amanhã poderemos enfim comemorar o ano do galo de fogo no bairro da

liberdade — e de nossos corpos frágeis faremos um bom uso — respirar é um

luxo — disse o porteiro do prédio tentando consertar seu ventilador portátil

 

 

 

 

 

 

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um dia meu pai me levou

para  ver o mar — em  silêncio

perdoamos o futuro

 

 

 

 

 

 

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o que temos

de minério

 

barro e lodo

 

temos de sonho sal

e sopro

 

o que temos

um do outro

 

 

 

 

 

 

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o teu sono entrecortado um alívio — a esperança

um delírio necessário — lá fora faz um dia bonito

e violento — mas para que tocar nestes assuntos

obsoletos — trago nas mãos um punhado de nuvens

pedaços de tarde  — o céu de minas sob as pálpebras

e uma canção

recém-nascida de outros tempos

 

 

 

 

 

 

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não era prosa

nem verso

não era longe

nem perto

era o sono

dos peixes

o azul

do universo

e a palavra

sem corpo

numa espécie

de sopro

 

 

[Poemas do livro Topografia das ondas. Patuá, 2017]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


arrudA - Poeta/Letrista/Performer - São Paulo/SP. Publicou As menores distâncias podem levar uma vida (Selo Edith/2010), 23 Poemas de arrudA (Coletivo Dulcineia Catadora/2012), A representação matemática das nuvens (Patuá/2014) e Topografia das ondas (Patuá/2017). Tem parcerias musicais como poeta/letrista em CDs gravados com Alzira Espíndola, Peri Pane, Anelis Assumpção, Iara Rennó, Marcia Castro, Tatá Aeroplano, Jerry Espíndola, Lucina Carvalho, Gustavo Galo, Daniel Viana, Ligia Kamada, Meno Del Picchia, Selma Boragian, Bárbara Eugênia, Pipo Pegoraro. Ao lado do artista Peri Pane, criou o projeto "Canções Velhas Para Embrulhar Peixes", que completou 10 anos em 2018, com o lançamento do Volume 3. Tem músicas [parcerias com Alzira E] gravadas por Ney Matogrosso, Zélia Duncan, Carlos Navas, Maria Alcina e Fabiana Cozza.