Poema preto

 

 

Crianças sorrindo cantam

e batem tambores nos terreiros

do mundo inteiro à frente.

 

Todos os Palmares

espalhados pelo mundo

multiplicam seus blues,

seus sambas e lundus.

 

Fortes como o café,

líquidos como a lágrima,

leves como vento

e belos como a noite.

 

Os pretos paridos

nascidos pretos que são,

flores pretas cortadas

do chão e envasadas.

 

Eu desejei ser preto

e sou preto de outra cor.

 

Outra rosa outra flor.

 

Eu desejei ser preto

e sou preto de outra cor.

 

 

 

 

 

 

Caldo brasileiro segundo Oswald

 

 

                            "A couve mineira tem gosto de bife inglês"

Oswald de Andrade

 

 

Entre indiferente e devoto

devoras a fala mantiqueira

em pratos franceses.

 

Littéral

 

Sissou brasileiro nulô

como feijão tropeirrô

 

sissou preto

como preto

sissou branco

como branco

 

sissou branco

como preto

sissou preto

como branco

 

e o porquinho coitado

espedaça-se no caldo.

 

 

 

 

 

 

O menino no cordel

 

 

O menino equilibrista

pendura-se no perigo.

 

No fio fino e arriscado,

estica-se seu destino.

 

— Chama a mãe, Zezé,

pra ajudar o menino!

 

— Deixa disso, pessoa,

vem acudir o franzino!

 

E o menino, distraído,

equilibra-se no cordel

 

da vida tentando não

descambar lá do céu.

 

 

 

 

 

 

Prefácio

 

 

Não explico, reflito

e guardo um samba

no bolso do colete.

 

Não uso paletó nem chapéu,

eu sou um amoral das Letras.

 

Tenho demasiada indisciplina

para render-me a flertes gramaticais

e suas vírgulas preconceituosas.

 

Escrevo o que vejo como quero,

e desculpem-me os moralistas.

 

 

 

 

 

 

História de algum brasileiro

 

 

I

 

Vejo se não roubo

e me roubam todo

e qualquer martelar

em ferro ou concreto

e massa cinzenta,

erguendo colunas,

alicerçando potências

que não são justas

ou medidas exatas,

dividendos estranhos

de um trabalho duro.

 

 

II

 

Vejo se não me canso

e me lanço passarinho

no ar cachaça e pão,

batendo asas de pedra

braços fortes e pesados.

 

 

III

 

Vejo se volto e descanso,

música da minha terra,

enquanto organizo feiras

em férias de salários

e rios brancos de peixes

e restos de fumo preto

nas pontas dos dedos.

 

 

IV

 

Vejo se não me dano

finalmente sem fé

na escadaria sem fim

de joelhos dobrados

e cabeça baixa diante

da cruz que me carrega.

 

 

V

 

Vejo se danço um samba

na noite não esperada

até que amanheça o sol

que esquenta a madrugada

e talvez seja, ainda assim,

uma promessa de felicidade.

 

 

 

 

 

 

Vez do inverso

 

 

Agora é a vez

de quem não,

 

do sem berço,

do sem terço,

do sem verso.

 

Agora é a hora

de quem nunca,

 

do que arrisca,

do que ignora,

do que perdeu

e não tem hora.

 

Agora é a vez

do que jamais,

 

do não visto,

o esquecido.

 

Do que escuta

mas não fala,

 

do que trabalha

mas não lucra,

 

do que paga

mas não leva.

 

A versão já não conta,

agora é inverso título

e outro grito se impõe.

 

É a vez do inaudito,

o maldito ignorado.

 

Agora

é a vez do inverso.

 

 

 

 

 

 

No que se ver

 

 

Inclinar o corpo,

erguer em arcos

as sobrancelhas

e dilatar as pupilas.

 

Assim prever-se e

absorver minúcias,

cortar desmundos,

violar as distâncias

supor-se aço para

 

remover enganos,

negar algaravias,

ver o poeta nu e

em pelos próprios

e espelho público.

 

A língua à mostra,

réstias de dentes

caninos e molares,

máquina amorfa

aparelho fonético.

 

Silente e patético,

anônimo sujeito

de qualquer lua.

 

 

 

 

 

 

Êxodo

 

 

Homens

da terra

na cidade

são homens

da terra

na cidade.

 

São homens

da terra

em mar morto

são homens

mortos no mar.

 

Homens

da terra

são homens

da terra,

e terra é o que lhes cabe.

 

Terra é o que lhes cabe,

terra, não necessidades.

 

É preciso que homens

da terra

sejam homens da terra,

e que a

terra não

lhes falte.

 

 

 

 

 

 

Scliar, o Carlos

 

 

Sobre o papel

tinta de poeta,

letra de pintor,

valsas de viena.

 

Scliar escreve sobreposições

esfumaçando entreveres tais

que sua tinta,

quase seca,

pinta o verso

 

e abaixo de tantos telhados

pessoas mais, seus objetos,

e mais o que, estético, luzir

recordará a vida sem guerra.

 

A vida pura limpa e equilibrada,

de onde se pode adivinhar ainda,

nesse organizar-se de elementos,

algo belo e livre das dissidências.

 

 

[Poemas do livro Vez do Inverso. Patuá, 2017, 146 págs.]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


André Merez nasceu na capital paulista, em 1973, iniciou como letrista e contrabaixista das bandas Cathedral e Siso Símio, nas décadas de 80 e 90, cursou Letras e fez pós-graduação em Língua Portuguesa na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Na graduação, realizou pesquisa sobre o discurso do poder na obra de Plínio Marcos e na pós defendeu tese sobre as relações entre o processo inferencial e as questões de interpretação de texto na verificação de aproveitamento de leitura. Leciona Teoria da Literatura e Gramática há mais de 18 anos e desenvolve pesquisas sobre música, artes plásticas e poesia. É autor do livro Vez do Inverso (Patuá, 2019), editor da revista Poesia Avulsa e já teve seus poemas publicados nas revistas Mallarmargens, Diversos Afins e Gueto.