garota-propaganda

 

 

era década de oitenta

minha mãe saía num outdoor

em cima do Foto Horto

 

a pele dourada em manteiga

prolongava os sábados de clube

 

imagino minha mãe

divindade extemporânea

amarrando os cabelos

em tomilho e lavanda

 

enquanto olhava para a câmera

 

um ou outro traço do rosto

do bibelô de Santa Luzia

arriscava um contraste barroco

na beleza ardida

 

ainda hoje a reconhecem

dizem que é pelo olhar triste

 

 

 

 

 

 

museu nacional

 

 

da potência dos atritos se entendia o fogo

pedra contra pedra em precisão atenta

 

da urgência de ser vida se fazia o fogo

olhos repousados no inflamar da lenha

 

da latência do apetite se servia o fogo

em novos hábitos que a carne sustenta

 

da exigência do divino se sagrava o fogo

de orações vertidas a hecatombes lentas

 

da carência de poder se corrompia o fogo

lançado ao labor contrariado que inocenta

 

da dormência do homem se perdia o fogo

ruínas repousam entre um par de algemas

 

da incoerência de um fim se reinicia o fogo

história irrepousável em cíclica contenda

 

 

 

 

 

 

mulheres de Ítaca

 

 

as mulheres de Ítaca esperavam pelo belo

veladas aos cuidados dos banhos de azeite

 

em cada nau rasgando o coração da costa

e no farfalhar das migrações dos pássaros

toda uma década de motivos para esperar

 

tateavam os seus corpos às possibilidades

invocando as vontades vertidas nas mãos

com a força imantada no cativeiro dos pés

 

o desejo era libação jorrando das margens

a certa altura incontido, dada sua potência

 

essas mulheres e seus silêncios absolutos

e suas rotinas ao redor do regresso tardio

adornando a pátria contra o esquecimento

 

esperavam pelo belo em seu duplo sentido:

 

a promessa no mar e o destino no Olimpo.

 

 

 

 

 

 

procissão de Baco

 

 

recolhei os profanos sóbrios

os praticantes do contradelírio

recolhei, recolhei as estátuas

de lábios de gesso

 

as carnes navais estão passando

bailando na ciranda do desejo

 

recolhei suas crias selvagens

Baco irá comê-las mudas e cruas

para que não germinem

comê-las cruas e cedo

 

as carnes navais estão passando

bailando na ciranda do desejo

 

seus pais e mães, as gêneses do perverso,

dos ovos mal fecundados recolhei

toda a casta impura dos muros do sossego

 

as carnes navais estão passando

bailando na ciranda do desejo

 

assim como seus pares, cônjuges soturnos

que nunca derramaram uma gota de vinho

em seus corpos de sucumbida virgindade

 

recolhei, recolhei os estáticos companheiros

 

as carnes navais estão passando

bailando na ciranda do desejo.

 

 

 

 

 

 

memória

 

 

memória

:

tempo da nuvem rasgando o céu

lume de estrelas nas retinas cósmicas

o sentido do sangue após o corte

a direção do crescimento das plantas

espelhos em inversões cristalizadas

as feições, as ciências genéticas

as modificações das rochas

a sustentação das calçadas aos passos

a rotina do asfalto

o impulso do ventre

:

o caminho da bala à mira de sempre

 

 

 

 

 

 

antigênese

 

 

no princípio era a morte

em ruínas estáticas de esgotamento

a desintegração em tecido único

um não-espelhamento em ponto cego

o breu exalando seu odor rançoso

à falta de caminhos possíveis

 

em seguida veio o verbo

a mão que se ergue no aglomerado

convocando a luz o reinício do pulso

desamassar ao convexo a face composta

fazer das cinzas seu sustenido etéreo

gerar da queda o ímpeto reverso.

 

 

 

 

 

 

verborragia

 

 

as palavras me engatam a garganta pelas úngulas

escalando paredes massudas de vazio acumulado

 

sinto o amargo dos farelos as camadas raspadas

a saliva confinada nas grossas grades da afasia

sinto cada gota desse sumo chorumoso e espesso

desgarrado à força na degeneração dos silêncios

 

tento cobrir a boca reprimir o ímpeto delinquente

numa hipótese vã de fazer descerem os demônios

chego a engolir pressionar empurrar impelir sigilos

 

mas vozes correm em desespero entre meus dedos

explodindo faringe laringe mandíbula cordas vocais

fere a carne coagula o verbo na arma que impunha

 

as palavras me sepultam a mudez pela insistência

arrebentando pontos repetidos de eternas suturas

 

 

 

 

 

 

delirium

 

 

há um detento entorpecido no terceiro corredor

 

já não há mais paredes para reter seu verbo

 

queria contar de como vê os outros como aves

ouvindo as mesmas melodias no alongar dos bicos

e que outro dia o guarda deixou cair uma pena

tentou avisar mas ele seguiu voando intangível

como voam todas as pessoas e queria contar

do dia em que o céu virou ao avesso deixando

as árvores brancas com as copas viradas para nós

 

as palavras ousam dois três palmos para fora da cela

e fogem e buscam a voz o visível a verve o vórtice

 

mas já não há mais paredes

 

e tudo o que há são paredes.

 

 

 

 

 

 

gênesis

 

 

filha, não me lembro da sua barriga de grávida

 

não me chegam as recordações do ventre ocupado,

do espaço em seu corpo hospedando começos,

do enxoval amarelo e branco no guarda-roupas,

da expansão dos meses ao redor do âmago uterino

 

busco na memória e não encontro nem vestígios

do pequeno corpo emergindo da carne rompendo

a bolsa a pele os nervos os hábitos os destinos

em ímpetos espasmáticos sangrentos pseudoferinos

 

todas essas visões me soam inconcebíveis

 

mi'a neta é rosa que desabrochou inesperada

abençoada e regida pela Nossa Senhora da Conceição

veja como seus membros são pétalas moventes

num corpo esguio e frágil sob o manto imaculado

 

não é como a dureza da queda de um fruto no solo

o corte de um tronco, o árduo crescimento de um broto

ou até o plantio da semente socada no fundo da terra

 

não me mostre mais as fotografias de agosto

que elas me doem feito mentira mal contada

 

juro os dois pés juntos nessa única crença

a morrer criando raízes para acompanhá-la.

 

 

 

 

 

 

apetite

 

 

basta o desgastante falar das maturações

do tempo do verbo que nunca se alcança

 

tez algodoada de um azul inquebrantável

onde a palavra é lúcida e a poesia é mansa

 

que o fruto ainda verde caia sobre as mãos

em um só sentido, uníssono e irreversível

desfazendo-se em grãos ao puir nos dentes

 

e confronte a etérea solombra atmosférica

com toda a força desgarrada das urgências

interrompendo o tempo sacro da semente

 

bendita seja a palavra daquilo que se consome

bendita a rebelião do lado de dentro da fome

 

 

 

 

 

 

poeta

 

 

entidade ocupada por portais semiabertos

artífice diluidor das palavras do dicionário

antenas captadoras de sopros imagéticos

sintonizando universos não-catalogados

 

maestro a reger vozes isócronas avulsas

lentes refratoras das luzes inesgotáveis

extraindo a arte para fora das molduras

linha tênue entre insurgente e selvagem

 

glândula cravejada no corpo do mundo

imersa na estrutura e sob a pele grossa

vítima preliminar de seu próprio produto

 

orador das percepções não empilhadas,

é tecelão em tarefa constante e laboriosa:

costurar do homem todas as camadas.

 

 

 

 

 

 

cigarra

 

 

a cigarra não canta a própria morte

ela vocifera, urge, ralha e brada

em agudos polifônicos dispersados

ao primeiro sinal de nuvem negra

 

mas não canta a própria morte

 

ela anuncia o arrancar da própria tez

ovacionando a nueza às semelhantes

prolificando-se em ciclos axiomáticos

 

mas não canta a própria morte

 

ela se espalha entre toras e troncos

pisa na terra, equilibra-se em galhos

voa tardes que lhe resumem a vida

numa inconsciência pura e indolor

 

e isso é estar bem longe da morte

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Amanda Vital (Ipatinga/MG, 1995) cursa Letras; com ênfase em Estudos Literários, na UFMG, em Belo Horizonte, transferida da UFPB. Publicou seu primeiro livro, Lux (Penalux), em 2015. O segundo, Passagem, pela Patuá, em 2018. Participou das antologias 29 de abril: o verso da violência (Patuá, 2015), Ventre Urbano (Penalux, 2016) e Concurso Nacional Novos Poetas: Prêmio Poetize 2016 (Vivara Editorial, 2016). Tem poemas divulgados em algumas revistas literárias e jornais, como Ruído Manifesto, Mallarmargens, Literatura e Fechadura e Jornal RelevO. Publica poemas nas redes sociais e nos blogues Amanda Vital Poesia e Zona da Palavra. Também cria videopoemas experimentais. É colaboradora do conselho editorial da Mallarmargens.