quase mesmo

 

                            para guilherme gontijo flores

 

 

mesmo é palavra arcaica, que nem quase

identidade quase igual não tem

metipsimus   medesimo   meesmo   ipse

de igualdade mais que igual

mas mesmo mesmo não tem como

que nem quase que de como se quasi

faz suar

a mais sagrada lógica

como explicar o mesmo o quase?

não tem exposição aristotélica que

dê conta do quase mesmo universal que o mesmo é

— helenisticamente sabe-se não há

na natureza mesmo:

só há, sempre,

quase.

 

 

 

 

 

theatés

 

 

te agrada ver o que te faz sofrer?

serás espectador da própria morte

agrada ver o que te faz sofrer?

agrada ver o que te faz sofrer

agrada-me o fazer sofrer a ti

agrado-me em fazer-te sofrer só

 

agrada ouvir o que te faz ver o que te faz sofrer

te agrada ouvir o que te faz morrer

te agrada ver o que te desfaz, morrer

despedaçado

me agrada ouvir o que te vê sofrer

me agrada que te agrades em fazer

sofrer a quem te vê morrer

agrada-te morrer?

 

agrada-me o teu morrer

enquanto expectas tua própria morte

todas as vezes em que morres só

todas as vezes em que vês seres visto

 

incorres cônscio em transgressão fatal

 

por que a-

final

te agrada

ver

o que

te faz

sofrer?

 

 

 

 

 

 

sangue

 

 

o sangue

quando não reflui eternamente alegre pelos vasos

sem preocupação alguma senão fluir alegremente

cheira mal

sai resseca escuro

por orifícios como os do nariz

eventualmente pelas órbitas dos olhos

ou canais profundos da audição

ou mesmo boca, sobre dentes

(que é quando se percebe o gosto férreo);

 

por vezes, em parcela em nada desprezível da espécie

sai de dentro do útero a lembrar o resto os outros

da culpa original

 

 

 

 

 

 

retrato

 

 

será que a gente consegue ver o que vai vir

nesse desejo estranho de fazer retrato

de uma menina que tá ali no fim das eras

quando ninguém mais faz retrato

será que a gente consegue fazer ou manter promessa

será que a gente ainda consegue performar

num retrato o alívio de um velho olhando a foto da menina

esperando o ano novo?

 

 

 

 

 

 

as dez mais pt. 1

 

 

abandonar as inibições para se divertir

causando um estado de êxtase ou encantamento induzido pela música

e relaxamento que vem de um banho na floresta,

em sentido figurado ou literal

que dá uma vontade irresistível de beliscar ou apertar alguém muito querido ou amado

— um senso de realização completa e perfeita —

depois te dá aquela ansiedade ao esperar alguém,

aquela de ficar sempre checando se a pessoa já chegou

seguida de um

sentimento nostálgico de falta do passado, com alegria pela

lembrança, mas tristeza pelo tempo que não volta mais,

"sublimidade desolada e obscura", centrada na transitoriedade e imperfeição da beleza,

nostalgia melancólica por uma pessoa ou um lugar

ou coisa que está longe no tempo/espaço

desejo vago por algo que pode nem mesmo existir desejo

intenso por estados alternativos de vivência e

realizações da vida,

necessariamente

inatingíveis

 

 

 

 

 

~

 

                            para luci collin

 

 

tem algo na vazante do orifício que se adumbra no penoso fímbrio calcutado no

penhasco

tem algo que se encera no tonante perfurar do céu intenso azul polar

tem algo na linguagem do penhasco militar que enfrenta vasos do vermelho que

ancestral

tem algo intenso austero no verbera-se entroncado no orifício

tem algo de cheirar que adentra a venta suprimindo ocaso velho pirilampo magiar

tem algo solta fosco no bolero enternecido fugaz      tem

algo que se esconde nos escombros seculares do recurso alveolar

tem algo que se encrava no orifício pendular que solta farpas nas vidraças

tem

algo que atropela a deus dará   e ao fim e ao cabo isenta tem     algo

tem algo que de algo se faz alto no entrementes do vagar no mundo auspício

estranho algo tem algo tem muito tem mais que algo que soçobra

tem algo na circunferência dessa terra que se encontra ao circundar tem

algo nesse drama que anuncia que algo tem algo não

 

tem

 

 

 

 

 

~

 

a massa inerme da umidade

como imenso bloco

expande-se pra além do que se sente

no auge dos sentidos

 

esfera expande-se

da cavidade em sensação ilimitada

de um universo sempicentrípeto

além do centro multilocalizado

 

do multifocalizado ponto de onde olha

o centro expande-se atormenta

o zero pra onde tende a gravidade

 

o zero expande-se de fora a

tormenta implode o zero dentro

de onde o onde fora dentro certo

até que a luz da aurora vacilante

 

perfura a terra inverte a gravidade

lança terra afora a massa inerme

do bloco escuro da umidade

 

 

 

 

 

 

causa sui

 

 

segue em ciclos o cavalo alucinado

sem tocar a terra

em pista longa obdura em multicores

segue em ciclos

elevação superalada em transe intenso

psicotropel reverberado peso

em ciclos

no escuro luminoso um escorregador

induz catábase

segue

só se acaba

com pupila dilatada ao sol em si

 

 

 

 

 

 

~

 

destroços de linguagem claustro

ensacam lixo que acumula

até que eu ache o tempo precioso

sempre ocupado

pra te levar pra fora

onde pegam

e some

ou some ou pegam

e vai pra longe

e vira minhoca ou

furo

 

 

 

 

 

 

monte estranho iii

 

 

e se eu quebrasse todos os seus ossos um a um será que você choraria a noite           

             [toda

ou dormiria nos meus braços horas horas horas depois

ou quebraria só de tanto que chorou

a morte é de verdade

não é pra cantar

se você tivesse aqui diria corvo dormindo

sua irmã te chama pelo nome sem saber

 

você vai dormir na rua?

você vai voltar?

você vai morar no céu?

 

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Rodrigo Gonçalves. Professor de Língua e Literatura Latina na UFPR, diretor da Editora UFPR e bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Traduziu, entre outros, John Milton, Ovídio, Terêncio e Lucrécio. Publicou em 2017, em coautoria com Guilherme Gontijo Flores e fotografias de Rafael Dabul, a coletânea de ensaios Algo Infiel: corpo, performance tradução (Cultura & Barbárie/n-1) e, em 2018, o livro de poesia Quando o verão (Kotter/Patuá), também com fotografias de Rafael Dabul, de onde saíram os poemas aqui publicados.