©ana andonovska
 
 
 
 
 
 
 

Antes...

 

 

Antes do antes somos bloco de pedra

Se nascemos, àquele que detém o cinzel nos destinamos

Aos pequenos golpes diários: contratos, telefonemas, juros

Antes pedra, antiguidade e templo, agora forma e obra

A ausência de virtude do escultor nos enfeia

De narizes, bocas e olheiras fundas

Presos em reter um dia a pedra que fomos

Em salas fechadas ao público

Aguardamos a retrospectiva dos artistas menores.

 

 

 

 

 

 

Nanquim

 

 

Aprendi com as árvores

A escolher um dia de chuva para tombar

E pôr a culpa no vento

Para que ninguém desconfie

Da minha imensa vontade de cair.

 

 

 

 

 

 

Stravinsky

 

 

Agora temos uma casa

Larga e vazia

Uma casa com um único objeto, no centro da sala

{o piano

Uma casa feita para reunirmos o silêncio

Nenhum outro som do mundo

Apenas a contingência do piano

 

E com o passar do tempo, se no móvel

{habitassem abelhas

Um pequeno ruído nos incomodaria

Por horas, dias, meses resistiríamos em reconhecer

Nossa impontual virtude.

 

 

 

 

 

 

Crise conjugal

 

 

Passei horas olhando meu canário na gaiola

Já estava escuro quando percebi que você me olhava há horas.

 

 

 

 

 

 

Amantes

 

 

Nossa infâmia começa cedo

A luz devassa,

A cama bisbilhotada

 

Os corpos esquartejados

De ontem

 

Precisamos nos remontar

Já é dia.

 

 

 

 

 

 

O tempo dentro da gaiola

 

 

O tempo dentro da gaiola

Requer perdoar as horas

E nunca aquedar

Faz-se de espera e remordimento

Das tardes de chuva e sementes livres

O tempo dentro da gaiola

Às vezes é de cantar

Se não cantamos, resta-nos apenas

O tempo dentro da gaiola.

 

 

 

 

 

A bailarina literata

 

 

A bailarina literata não se move

Os músicos tocam apreensivos

Algumas tosses

E olhares inertes

Duas horas transcorreram

Até os agradecimentos

Poucos aplausos

Poucas visitas ao camarim

Ninguém percebeu

A beleza daquele Romeu e Julieta

Dentro dela.

 

 

 

 

 

 

O último pai

 

 

Um senhor deixou envelopes

Com certidões, contratos de compra e venda

E escrituras

Num deles vi meu nome

Junto a instruções

Senti-me tão próximo

Desse senhor que deixou envelopes. 

 

Um cão

Sê um cão

Intruso, magro, apartado

Porém, cão

Indiferente a deslouvor e pedra

Inabalável, insistente e tenaz cão

Incomunicável

Recolhido em ser cão

Um cão de pelos áridos

De boca imunda

De olhar desmaiado

Cão.

 

 

 

 

 

 

Proteção das nascentes

 

 

Plantarei ingás e pinhas do brejo

Pindaíbas e buritis

Esperarei então a primeira lágrima

E as primeiras chuvas

E dos teus olhos úmidos

Chegarei até o rio da Prata.

 

 

 

 

 

 

Soltar passarinho

 

 

I.

 

Gostaria de pedir asilo ao amarelo

 

 

II.

 

Possuidor das terras que guardo nas unhas

 

 

III.

 

Permanecer cachorro correndo

Atrás do carro

Até o coração doer de esforço

 

 

IV.

Na vida fui tarde

Vivi por quases

Desperdicei-me em passarinhos.

 

 

 

 

 

 

O assobio do pássaro na mata

 

 

As folhas deixam-se levar

Para serem sugadas

Por raízes de árvores estranhas

Que se alimentam de memória

De folhas que se deixam levar

Há outras, traiçoeiro vento

Que se deixam cair

E apodrecer aos pés

De sua própria árvore originária.

 

 

 

 

 

 

Jogo de água e tempo

 

 

Segura o tempo como quem agarra a água

O tempo se fecha na mão que afunda

E sai firme, molhada

Mão contra mão, só carne

Cadê o tempo?

 

 

 

 

 

 

Lida

 

 

No grotão de ser sozinho

Perdi a linguagem

Arredei para o lado dos bois

Mata ensimesmada

Abrigo de lâmpada esmorecendo

Guarda de ruídos e palavras dispersas

Sobram as sombras, murmurejam os muros

Gado bravo em cerca velha

Dia tirado dos mateiros

Tear, garimpo, ordenha

O tedioso ofício dos dias

Carcaças de poemas

A um copo de cachaça me empurras

À essa imagem existência

Torrão que é semente e pasto

E uma pontada nos rins.

 

 

 

 

 

 

Fábrica de sol

 

 

A máquina de prensar humanos faz seu trabalho

E se temos porventura algum pensamento sombrio

Logo um desânimo contente nos acalma

Precisamos de otimismo e unidade

E cânticos às engrenagens, aos domingos

Para permanecermos sorrindo sob a máquina de prensar humanos

Para sobrevivermos aos exigentes que nada criam

Para continuarmos da substância que existimos

E criamos o hábito.

 

 

[Poemas de Currais Concretos. Intermeios, 2018]

 

 

setembro, 2018

 

 

Marcelo Benini nasceu em 1970, em Cataguases, Minas Gerais. Vive em um núcleo rural próximo a Brasília-DF. Publicou: O Capim Sobre o Coleiro (poesia/edição do autor/2010); O Homem Interdito (crônica/Intermeios/2012); Fazenda de Cacos (poesia/Intermeios/2014). Foi publicado na Alemanha em 2013 pela fundação Lettrétage e em 2018 lançou seu quarto livro: Currais Concretos (poesia/Intermeios).

 

Mais Marcelo Benini na Germina

> Contos