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Eu tenho razão. Eu sei que tenho. E não importam argumentos, fatos. Porque a razão está comigo. Sempre esteve. Desde o começo. Eu não pedi para ser a mais bonita. Não pedi para ser a mais popular, para ter mais namorados, mais amigos, para ser a mais magra, para não ter espinhas, para ter dentes perfeitos. Não, eu não pedi para viajar pelo mundo, para morar em casa cara, para ter marido rico. Nem os cães de raça no canil eu pedi. Veio tudo sem querer.

Até você, irmã.

Mas assim que você nasceu, tudo fez sentido. Eu me lembro da minha euforia olhando o seu corpo minúsculo e vendo como você era feia, enrugada, vermelha. O medo da espera virando alívio. Você era tão menos do que eu. Mamãe também achou. Certeza. Eu vi os olhos dela se contraindo. Vi as lágrimas. De raiva. De rejeição. Por que mais mamãe choraria? Porque você era horrível. Porque você era insignificante. Porque você parecia um rato, sem cabelo. Porque você não era eu.

Uma semana mais tarde, escutei ela dizer à babá que você era um ratinho. E fui, novamente, a criança mais feliz do mundo. Um rato. Esse bicho sujo que se esconde do sol. Avisei às bonecas para ter cuidado com você, porque você ia morder e urinar e defecar doenças pela casa toda. 

Você cresceu. Eu preferia que não, mas nem sempre a vida ideal é possível.

Mirrada, encolhida, encardida. Foi assim que você cresceu. E enquanto eu era a princesa nas peças de teatro da escola, você abria as cortinas do palco. Eu saía com a mamãe para comprar roupas novas; você usava a mesma calça com blusinhas vagabundas que se acabavam de velhas. Eu ia para as festas; você ficava no quarto. Ouvindo música sozinha, lendo sozinha, vivendo sozinha. E enquanto eu beijava na boca e recebia flores, você encarava o chão, tentando evitar que alguém olhasse para você. Como se alguém fosse olhar para você!

Quantas vezes eu escondi você dos meus amigos? Para não ouvir os risos e as piadas maldosas. Insuportável ter que aturar você por perto. Você e esse seu jeito de crescer sem olhar em volta. Pior que isso. Sem pedir desculpas por ter vindo infernizar a minha vida. Se recusando a ser como todo o mundo. Ignorando a opinião das pessoas. A minha. Mas sempre por perto. Obrigando as pessoas à sua sombra.

Você foi um nada. Um sussurro na casa. Mamãe nunca gostou de você. Não como gostou de mim. Foi comigo que ela conversou mais. Fui eu que ela levou aos médicos. Foi para mim que ela contratou professores particulares. Foi sobre mim que ela conversou com papai várias vezes. E sabe o que ela dizia? Eu me preocupo com essa menina.

Essa menina era eu. Era eu que merecia a preocupação da mamãe.

Papai, não. Papai sempre foi um chato. Um desmancha-prazeres. Precisava ter dado a você aquele vira-lata maluco? Todo o mundo achando o bicho esperto, engraçado. Um cachorro nojento. Tentando cruzar com a minha cadela de raça. Quantas vezes eu tirei aquele cão de cima dela? Papai achava graça, ignorava o meu protesto. E deixava você fazer o que queria.

Como a festa de 15 anos. Que não houve. Porque você preferiu fazer uma viagem cultural. Viagem cultural. Que é isso! Coisa de adolescente frustrada, de adolescente feia. Feia, não. Horrível. É o que você sempre foi. Com aqueles óculos no rosto, o aparelho nos dentes, o cabelo sempre preso como o de uma velha. Sem brincos, sem maquilagem. Nem ao menos um batom. 

A mamãe me entendia. Ela vivia repetindo para mim que você não tinha vaidade, que não se preocupava com as mesmas coisas que eu. E eu sei que isso era uma crítica. Não importa que ela falasse com um sorriso nos lábios. O sorriso era apenas um disfarce para não humilhar você. Coisa de mãe. Mas no fundo era tudo desprezo. Mil vezes desprezo.

Sabe o que ela dizia quando via você comprar livros e livros? Que você só tinha um objetivo na vida: estudar. Era o mesmo que chamar você de patética. Só você não entendia.

Um dia, eu perguntei a ela qual de nós duas ela achava que ia se casar primeiro. E ela disse que era eu. A sua irmã não pensa nisso, foi o que ela falou. Para ser agradável com você. Ela sabia. Sabia que eu faria coisas que você jamais conseguiria. Que eu ia me casar, dar netos a ela. Que eu ia ficar rica, fazer viagens maravilhosas — e não essas chatices culturais —, comprar obras de arte, ser capa de revista. Que meus filhos seriam campeões. Que eu sempre ia ser mais importante que você. 

Quando você foi fazer seu doutorado na Inglaterra, quase não se falou o seu nome lá em casa, sabia? Numa das poucas conversas entre papai e mamãe a seu respeito, ele disse que, quando você voltasse, não se podia esperar outra coisa de você além de conseguir um bom emprego. Tive um pouco de pena de você naquele dia. Bom emprego era o máximo que eles sabiam que você conseguiria.

Agora, isso. Esse prêmio que você recebeu do governo. Inesperado. Inexplicável. Uma palhaçada. Como se você fosse inteligente. Como se você tivesse sido feita para ser famosa. Ou importante. As pessoas aplaudindo você. Mandaram até flores. E você nem olhou para elas. Ora, por favor! Deve ser a falta de hábito. Afinal, você nunca foi mulher de receber flores, não é mesmo?

E outra coisa. É importante dizer. Achei deselegante a roupa com que você subiu ao palco. Na sua idade, branco? Uma cor que, definitivamente, não lhe cai bem. Apesar da sua pele bronzeada (outra deselegância tomar tanto sol assim). Branco. Parecia uma filha de Maria. A correntinha de ouro discreta e os sapatos de salto médio também não ajudaram em nada. Um desastre.

Quando eu fiquei ao seu lado nas entrevistas e nas fotos, só quis ajudar. Até achei que os repórteres iam pensar que era eu a premiada. Mas eles já conheciam você. Eles queriam você. Claro! Estavam interessados nos seus estudos (desculpe, mas na sua beleza é que não podia ser).

Mamãe era mesmo uma mulher esperta. Sempre soube a criatura limitada que você seria. Não é à toa que ela vivia repetindo: Eu só vejo um futuro para essa menina. 

E que futuro triste, minha irmã! Viver para ser alvo do interesse das pessoas. Logo, logo vai ser esquecida.

Você deveria ter morrido no parto, minha irmã. Teria sido melhor.

 

 

 

setembro, 2018

 

 

Cinthia Kriemler é carioca e mora em Brasília. Autora, pela Editora Patuá, de Todos os abismos convidam para um mergulho (romance, 2017, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2018); Na escuridão não existe cor-de-rosa (contos, 2015, semifinalista do Prêmio Oceanos 2016); Sob os escombros (contos, 2014); Do todo que me cerca (crônicas, 2012). E do livro de contos Para enfim me deitar na minha alma (FAC-DF, 2010). Organizou a antologia de contos Novena para pecar em paz (Penalux, 2017) e participa de várias antologias. Escreve para a Revista Samizdat.

 

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