©darryl cox
 
 
 
 
 
 
 

"Era a primeira vez que falavam do fim".

Mishima, Neve de Primavera

 

 

há algo no rosto sereno dela absorvido pela tela do Motorola, e isso o instiga e o move a falar algo, após ter pego a ficha de número 33, mas jamais ele falaria com ela num lugar desses, num lugar onde todos se revelam e todos se escondem, porque não é possível ir buscar esse tipo de medicamento usando uma máscara, então ele resolve esperar e ela é chamada logo antes dele, ou seja, ela tinha pego o número 32, num dia em que as entregas estão rápidas, como não sói acontecer se há operação tartaruga ou preguiça mesmo por partes desses servidores públicos, o mais comum, mas enquanto isso ele observa, pela janela que desce até o chão, os prédios que dali dá para ver, pois geralmente, remédio na mochila, para mais um mês, ele sai a tirar fotos das fachadas dos prédios antigos do Centro, algo que faz por puro altruísmo, ele e um conjunto de amigos que têm um grupo no Face chamado "ämigos da cidade", assim, com o trema, para serem diferentes, os quais têm o intuito de preservar para as gerações futuras aquilo que talvez nem seus filhos verão um dia, esses prédios que a especulação imobiliária vai varrendo como lixo para baixo do tapete do tempo, sendo isso, a arte de fotografar, algo parecido com o que fazia nos lugares por que passava, como em Nazca, de onde roubou pequenas amostras de tecido de um cemitério antigo, que deviam ter de 200 a 800 anos, "mais velhos que o Brasil", disse o guia, que não viu o roubo, mas que não estava nem aí para o patrimônio peruano, já que ninguém está aí para nada mesmo, pois que todos querem apenas cuidar de suas vidas, como se cuidar de suas vidas não dissesse respeito a cuidar da vida dos outros e das coisas da cidade, como os prédios e as casas, que são, afinal, os lugares onde as pessoas vivem e trabalham, não sendo nada uns sem os outros, sendo na verdade os prédios as pessoas, como este em que ele estava à espera do seu medicamento, quando a viu sair, ajeitando os óculos escuros com grandes ondas laterais nas hastes, como se fosse uma atriz saindo da sala de um diretor com um script novo, altiva e linda, o que o faz pensar que as pontes às vezes ficam mais longas e os rios mais largos, porque podemos medir o tempo e o espaço, mas não amarrá-los ou prendê-los ao modo de um cão a quem podemos levar para passear, e ela foi se dirigindo para as escadas quando ele foi chamado, uma pena, porque ele não apenas falaria com ela mas seguiria com o dedo essa linha do nariz dela, como percorresse o percurso do Criador, que certa vez tinha desenhado isso num momento de inspiração ou grande enfado, para alegrar o dia, mas ele acorda desse sonho de olhos abertos porque é chamado, apresenta a guia do seu médico e o documento de identidade e a moça rapidamente lhe traz a medicação que o  deixa vivo, mas não sem sequelas, como dores nas pernas e tontura, mas melhor viver e fotografar os prédios e as casas que morrer com eles e ser esquecido num cemitério onde hoje juntam os ossos em pilhas, como no Cambodja o fazem para assustar os turistas e não para lembrar os horrores da guerra, enfim, está ele ali como tantos outros — e ela também estava —, o que o faz perguntar-se, meu Deus, como uma mulher linda dessas foi se contaminar?, e ele mesmo vai respondendo, que decerto fez uma transfusão de sangue ou teve um namorado muito escroto que passou para ela o vírus, mas quem sabe? — ele jamais perguntaria isso para ela e esperaria que ela contasse e ele mesmo o faria num dia em que pudessem conversar, mas espere aí, ele nem sabe quem ela é nem onde mora e se ele vier no mês que vem no mesmo dia talvez não a encontre porque talvez ela não venha sempre no mesmo dia ou talvez ela tenha vindo para buscar o medicamento para outra pessoa, o que o faz ter um sentimento de perda mesmo antes de ter o objeto, afinal ele sempre pensou em encontrar alguém que como ele carregasse aquele mesmo fardo, porque em dois seria melhor para carregar, dizia sua mãe, repetindo a avó, repetindo a mãe, o fardo fica mais leve, mesmo que sejam palavras, esses dizeres óbvios, mas importantes de serem ditos, como as suturas dos cortes da pele, que fazem o corpo reagir mais rápido, formando cicatrizes menos feias, e ele pensa em cicatrizes porque seu pensamento segue uma linha sinuosa que vai parar no pescoço da atendente, que justamente tem uma cicatriz grande na garganta, que parece que alguém tentou cortar um dia, como se ela fosse um animal a ser sacrificado, o que o faz sorrir para ela, quando ela lhe entrega o medicamento, para sair dali correndo para ver se a encontra pelas redondezas, e seu dia parece de sorte, porque ela parou para fumar na frente do prédio e ele a vê a apagar o cigarro com a ponta da sapatilha preta e descer a rua rumo à Praça Tiradentes, onde entra numa estação-tubo, o que o faz pensar que está tudo perdido, porque não vai entrar atrás dela, pois seria demais, o que o faz decidir que é melhor seguir seu caminho de procurar fachadas pelas ruas de Curitiba — e até chegar ao shopping de mesmo nome há um grande caminho a ser percorrido, que ele resolve cortar pela Praça Osório, para pegar a Travessa Jesuíno Marcondes, onde há uma pequena loja com lembrancinhas indianas, que ele nunca compra mas que gosta de ver, para ganhar a Emiliano Perneta, que o vai levar direto ao shopping, ou quase, onde precisa resgatar um livro que pediu sob encomenda

 

ela chega e ele percebe que ela usa uma blusa de seda ikat uzbeque, que ele logo saberá que a mãe dela trouxe de uma viagem para um congresso de Direito, lá naquele lugar no meio da Ásia, o Uzbequistão, e que ela usa um pedacinho de meteorito e uma opala presos a um cordão de prata, preso ao pescoço, pois que para ela isso representa o céu e a terra e isso lhe trazia paz porque para ela tudo que acontecia embaixo era uma representação do que acontecia em cima e ele ficou perplexo com tanta informação, pois ela falava bastante e ele quis saber como o tinha encontrado e ela foi dizendo que entrou numa estação-tubo, mas quando o viu passar, desceu da tal estação e o perseguiu de longe como o fazem certos felinos que perseguem a presa até que ela fique exausta, para poupar a energia das grandes corridas e para saborear com mais prazer o prato, e ainda para ter forças de lutar contra hienas e aves de rapina, e que se chama Beatrix, com "x", sem saber direito explicar por que seu nome tem essa grafia, mas enfim, o que importa?, importa que ela o encontrou, e ele fica com vergonha de dizer que seu primeiro nome é Dante e prefere que ela o chame Cadu, pois seu segundo nome é Eduardo e ele não gosta mesmo de Dante e crê que talvez ela não acreditasse nessa coincidência bizarra, desses dois perdidos sob o sol da primavera, mas ela quer ver o livro que ele comprou e ele mostra um volume das poesias completas de Les Murray, que ela diz que nunca vai ler porque prefere ficção e tira da bolsa uma pequena edição de Mishima, como para provar que, sim, prefere ficção, e ele diz que não precisa mostrar nada porque para ele as palavras dela são mais que verossímeis e ela devolve o livro na bolsa onde esconde o medicamento que a mantém viva também, mas não falam disso porque há coisas que não devemos falar nem mesmo para nós mesmos, nem mesmo no escuro e nem mesmo nos pesadelos, então eles tomam um café e decidem andar, porque para ela andar é bom, relaxa a mente e cansa o corpo, e antes de saírem do shopping ela lhe mostra um vídeo que recebeu no Whats, no qual Garret McNamara é perseguido por uma muralha de água que parece movimento provocado por um mostro marinho de grandes proporções, e ela diz que se sente assim, como se uma massa de água a perseguisse, então andar vai dissolvendo essa sensação e ela pode voltar para casa e dormir quietinha, após ler mais um trecho de Mar da Fertilidade

 

ele diz a ela que gosta de fotografar fachadas de prédios e ela diz que pode levá-lo a tirar fotos de fachadas muito lindas de prédios e de casas, então a ideia é alcançar esses lugares antes do fim da tarde, para aproveitar a luz mais perfeita do dia, o que os faz adiar um tantinho as andanças, planejar comer primeiro um bolo de milho, para dar forças para a caminhada, com cappuccino, no café da Livraria Cultura, de onde saem, mas não sem antes ela parar para fazer e desfazer o rabo de cavalo até que ele fique exatamente como estava no início dessa atividade, algo que para ele mostra cada vez mais a distância dos dois, pois ela é linda e ele nada lindo, ela bem vestida e ele com roupas baratas e velhas, mas ela parece não se importar com isso, pois ele percebe que ela, nos poucos momentos em que para de falar, já olhou para ele de cima a baixo, não mostrando desconforto algum com isso, muito pelo contrário, parecendo gostar desse estilo largado dele e, assim, os dois saem pela Brigadeiro Franco, descem a Vicente Machado, alcançam a Coronel Dulcídio e sobem a Capitão Souza Franco, antes da Praça Alfredo Andersen, onde ela o faz estacar em frente a uma casa com pilotis finos de concreto, cobogós, detalhes assimétricos e uma chaminé de tijolos, que ela vai logo explicando ter sido feita à revelia do arquiteto que projetou aquela joia em 1949, onde viveu uma família "na casa mais feia e mais esquisita do bairro", entre risos, até a venderem, tendo a casa passado de mão em mão até virar uma pizzaria ou algo assim, o que explica a estranha coluna que se eleva como um cupinzeiro no meio do Louvre, e ele fica maravilhado e tira fotos tentando escapar dos fios e dos letreiros, fazendo o que pode, ao término do que ela o puxa pela mão dizendo "vamos, vamos, vamos, porque o sol já vai se pôr e vou te levar aos céus da arquitetura" e eles descem a Capitão Souza Franco e entram na Saldanha Marinho, meio correndo, meio andando, de onde ele já vai vendo um prédio gigantesco que faz sombra na quadra toda, um prédio em estilo francês, com sacadas enormes, decoradas com ferros grossos batidos e retorcidos, pintados de preto, como se eles estivessem frente a frente com um prédio restaurado no terceiro arrondissement, e ele vai ficando triste porque vê que ela não entende tanto de arquitetura assim, pois aquilo é um lixo, mas ela não quer mostrar o prédio francês: ao lado dele, há uma casa de madeira, quase caindo, toda torta, necessitando urgentemente de pintura, e ela diz "olha, o céu!, aqui ainda mora minha avó, mãe da minha mãe, e aqui eu passei parte da minha infância", e vai abrindo o portão como uma criança que chega ao parque e não sabe que brinquedo quer primeiro e lhe mostra os canteiros ao lado do muro, com umas flores magrelas e mal cuidadas, de onde se vê o fundo do terreno, lá onde vivem os arcanjos, numa luz de fim de tarde que ele precisa, urgentemente, fotografar.

 

Ela tira os óculos Prada de hastes retorcidas e os guarda na bolsa: era a primeira vez que falavam do começo.

 

 

setembro, 2018

 

 

Benedito Costa. Paranaense criado no interior de São Paulo. Doutor em Estudos Literários pela UFPR. Escritor, designer, pesquisador e professor universitário. Autor de Cidade sitiada (poesia), inédito.

 

Mais Benedito Costa na Germina

> Poesia