TONTO SINAL

 

 

Mudar em nome do novo

— discurso —

expressivo verbo.

Expulsar o gasto coral

das bancadas.

Supor supositório,

melhor sonhar evacuada

toda cruzada contra a língua

portuguesa que aqui aporta

e é porta aberta para o verso

cansar os pés.

Inscrevo-me para a maratona,

não quero acabar qual tonto

taquigráfico sinal.

 

 

 

 

 

 

DESATANDO A LINHA

 

 

Nada pode tirar

esses passos destoantes,

porque não dados,

dão;

não esperam ser abertos,

abrem-se

em portas desiguais

e incomodam

as harmonias conhecidas;

trazem o som da dúvida

que torna possível

andar sem até.

Esses passos violam

linha definitiva,

corpo final.

 

 

 

 

 

 

DESCARTE

 

 

Letras, como embriões de tédio,

multiplicam-se pelos cantos dos olhos,

afastam-se das palavras de sempre,

e a memória visual já não consegue

identificar signos mancos.

 

Letras como que matizes em fuga,

esgotando imagem pictural,

deixando visível apenas contorno

em branco e preto — pássaro em voo,

sem a leveza das penas multicores

(utopias).

 

Letras de um poema descartado,

ainda que picotado, permanece

à espera de precisa construção.

 

 

 

 

 

 

EM BUSCA DO SENTIDO

 

 

Até a vontade de folhear está presa ao clipe,

como se o metal quisesse atrair

a atenção do poeta, que se imagina

capaz de capturar, da página em branco,

o primeiro verso ainda embrionário,

à espera de faróis que o guiem pelos trilhos

das abstrações, em que formas recém-nascidas

articulam-se ao som do acalanto.

Na frente, visível ausência;

no verso, invisível presença.

Nada há no papel de futuras metáforas,

além do vazio que anula impressões.

Até a mania de pregar o clipe

está presa à vontade de não folhear,

como se do metal o brilho escapasse

aos dedos: decassílabo no berçário

da imaginação. O papel precisa de tinta,

como o signo, do ar que alimenta

os sentidos do poema.

 

 

 

 

 

 

BISTURI

 

 

Entro e saio dos versos

sem deixar de roer o osso

em busca da medula.

Sigo saciando minha fome,

mas, por um instante, engasgo

nos fiapos, e sem perder o bom humor

torço o garfo para a inabilidade

de quem não entende estes versos.

Eu me namoro

dentro e fora do poema.

Eu sou o centro cirúrgico

dos significados;

sou o paciente anestesiado

e abro-me com cirúrgica precisão,

tão exata quanto a face

no bisturi que sou.

 

 

 

 

 

 

À LUZ DO AMANHECER

 

 

Foram-se os caminhos,

e o drama das andanças

não consola pés,

nem remos justificam

a existência de navegantes

sem mãos,

quando, enfim, tudo se confunde

à luz da exatidão.

Texto banido pela perplexidade

de quem não quer acreditar

nas contrações do verbo ser:

parto tão poético

quanto o idioma que desmonta

um símbolo

supostamente eterno.

 

 

 

 

 

 

MARGENS E IMAGENS

 

 

Queria compor o curso das águas,

onde o corpo dramático

se transmutasse em rio-poema.

Assim como planto a vontade

no húmus que floresce

para o sustento da vida,

tento nadar contra a fúria predatória,

mas sou assoreado

em meio a tocos de madeira

e restos de produtos químicos.

Outra é a química dos versos

e se contamina tem a tônica como

antídoto;

outra é a água do poema,

sacia os olhos e ouvidos

e irriga o solo das conotações,

mas sem rio não há vida nem

imagens, não há livre expressão.

 

 

 

 

 

 

SILÊNCIO

 

 

Ousam cantar o silêncio,

e um piscar de olhos

pode encerrar recital.

 

Outro é o que bate,

surdo-mudo,

concretando o ar;

instransponível, apaga

o esboço de um verso

no nascedouro.

 

 

 

 

 

 

CHOCANDO O POEMA

 

 

Chocar o poema,

clara gema em transformação,

é mais que postura sonora

de significados

sobre um ninho de versos.

 

Chocar o poema

é não perder o voo,

o estímulo e a sugestão

da nova vida

— ao mesmo tempo pássaro

e fonte de alimentação.

 

 

 

 

 

 

COMPOSIÇÃO

 

 

Não determino o momento de compor,

vago no que parece certo

e acerto-me na visível confusão.

 

O momento não dado

é a composição,

e o poema escorre como tinta

fora da imaginação.

 

 

 

 

 

 

VERBOS

 

 

Os verbos brincam com o tempo,

e se por vir transpiro passados,

por ver atrelo-me

ao futuro recanto de reflexão

no meu subjuntivo presente.

 

E assim guio-me

pela conjugação de signos

que definem a história e o ritmo

do poema.

Busco o verbo fujão

que deixa o verso incompleto,

sem infinitivo

no meu finito visual.

 

Cansado, clamo por ajuda

na terceira pessoa;

imperativo, surge o verbo

recomeçar.

 

 

 

 

 

 

O "S" DE DEUS

 

 

Tiraram o "S" de Deus

e vejam só no que deu:

o "S" ficou sozinho,

mais à toa que ateu.

 

Não se deve esquecer

que o "S" é de Deus,

e é preciso dar a Deus

o que é de Deus.

 

Assim o verbo dar

já contém o dom de Deus,

que por ser onipresente

não é de acenar adeus;

que por ser tudo que existe,

também pode ser ateu.

 

 

[Poemas do livro Ver de Verso, 2017]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Miguel Mensitieri. Poeta, contista e compositor baiano, natural de Jequié. Autor de Fragmentos Tranzorrinos (1976), Ver de Verso (2017) e Planos Entrelaçados (2012), dentre outros. Sobre ele, escreveu o poeta Zarfeg: "Miguel é mestre do 'ver-so' e, como tal, realiza à perfeição o pressuposto concretista de — poeticamente — transformar o símbolo em ícone. E, ao fazê-lo, imprime ânimo aos signos verbais e/ou não verbais, para o bem da língua portuguesa e felicidade geral de seus leitores".