Em algum lugar de sua obra, Merleau-Ponty sugere que Deus é um personagem clandestino na literatura. Lembrei-me disso ao fazer uma leitura mínima dos Poemínimos, de Fernando Portela. Fui lendo vadiamente, numa certa (ou incerta) ordem que me levasse a descobrir o clandestino fugitivo.

O primeiro poemínimo que li foi esse: "Conto carneiros, mas não durmo: um deles enrosca-se na cerca". O que diabo faz esse carneiro enroscado no poema? Eu o percebi como o mal-estar que perturba o homem moderno, imerso na incerteza. A cerca do carneiro é sua prisão, a sua insônia. Não sabendo de onde vem, nem para onde vai, sente-se desamparado, numa triste solidão.

Quer ver? "Solidão é agradecer os parabéns do Bradesco". É patético, esse homem moderno. Solitário, melancólico, deprimido, não vê saída. "Era uma vez o futuro". Na sala do dentista, lê "um texto anestesiado", como ele próprio. É assim a sua vida. No entanto, ele tem um recurso: a ciência, e então sonha com Freud. Freud dá-lhe alívio e coragem, e ele se arrisca a fazer uma graça, como se fosse uma bravata: "Deus pensa que acredito nele". De fato, pra que levar a sério essa hipótese inútil?

Aos poucos, porém, descobre que a ciência não resolve todos os problemas e diz então, num dos poemas, que "Freud é frágil". Essa descoberta tem um preço, uma espécie de vertigem. E agora? "De bipolar sou curado. Mas o que faço sozinho?". Sem Deus e sem Freud?

De poemínimo em poemínimo, vai tendo consciência de sua condição. Ao cair na real, sua consciência se amplia e ele fica "transido na treva densa", a ponto de implorar "o flash dos vagalumes". Com esse pouco de luz, descobre que tem "Saudades do politeísmo! Cada qual com seu milagre". Primeiro a umbanda. "A Pomba-Gira pousou no Cristo Redentor". Depois o budismo. "Vejo a nuvem, ou ela me vê? Budismo — e quântico". Mas isso ainda não o satisfaz. "Há riscos de não percebermos os resmungos de Deus". O que quer ainda? "Todo mendigo tem ciúmes do seu Santo Sudário". Percebem o simbolismo que aqui se apresenta? O homem moderno é um mendigo de milagres. "Perdoe, Senhor, porque pequei e vou pecar daqui a pouco". Mas isso não tem importância porque, como diz Riobaldo, tendo Deus a gente peca sossegado. O que houve com ele? "Fiz sexo místico: um transe, dois, três". É de outra teologia que estamos falando. A partir de agora o carneiro enroscado na cerca e no poema não mais o aprisiona e, na sua liberdade, ele se entrega. "Não resista ao Perdão de Deus. É uma ordem".

A literatura é crente, descrente, ateia, blasfêmica, mas o personagem clandestino (esse salteador de estradas, dizia Nietzsche) sempre dá um jeito de se esconder em algum lugar para ficar nos espiando. Quem diria, Portela, que ele fosse se esconder nos seus excelentes Poemínimos? Mas cuidado. O teólogo Jack Milles, autor de Deus — Uma Biografia, acha que ele não é nenhum santo.

 

 

____________________________________

 

O livro: Fernando Portela. Poemínimos.

São Paulo: Laranja Original, 2018, 104 págs., R$ 35,00

Clique aqui para comprar por e-mail.

____________________________________

 

 

outubro, 2018

 

 

Waldecy Tenório é professor aposentado de literatura na Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC-SP, ex-pesquisador do IEA-USP, autor, entre outros, de A Bailadora Andaluza: a explosão do sagrado na poesia de João Cabral e ex-editor do Suplemento Cultura do jornal "O Estado de S. Paulo".