No Pequeno tratado das grandes virtudes, André Comte-Sponville resgata o conceito de "compaixão" da tradição clássica que entendia este sentimento como um "afeto triste" (Spinoza), na medida em que necessitava do sofrimento de outrem para se materializar. Ao opor a compaixão ao egoísmo, o filósofo volta a colocá-la entre as grandes virtudes, compreendendo-a como um "sentimento horizontal", que só faz sentido se compartilhado entre iguais, ou entre aqueles em que o desejo de igualdade é o imperativo maior, e não a necessidade de se compadecer.

Em A oração do carrasco, de Itamar Vieira Júnior, a compaixão é o sentimento que reaparece de modo constante ao longo de todos os sete contos que compõem o livro; sentimento examinado e reexaminado sob diversos pontos de vista, por cada um dos seus principais personagens. Senão, vejamos. Em "Alma" (que abre o livro), um gesto de extrema compaixão, em meio a um cotidiano de abuso e violência, muda para sempre a vida de uma escravizada que decide fugir quando se dá conta de que é um ser humano. Em "A floresta do adeus" (uma distopia oculta sob o manto do conto de fadas), uma região que separou amigos e familiares com arames farpados e vigias vinte e quatro horas, é palco de pequenos atos de desobediência que, aos poucos, minam as tentativas de separação dessas pessoas separadas pela força, mas, unidas pela solidariedade. Em "A oração do carrasco", um carrasco compassivo tenta amenizar ao máximo as últimas horas dos condenados, os quais é obrigado a conduzir até o cadafalso — um pequeno tratado sobre rebeliões silenciosas, com referências históricas a vários mártires assassinados, de Cristo a Luther King, passando por Lennon e Amarildo (da favela da Rocinha).

A lista segue: em "O espírito aboni das coisas", um guerreiro indígena sai em busca de uma planta rara, capaz de curar sua esposa grávida. Já em "Meu mar (fé)", Vieira emociona o leitor com a história de uma refugiada senegalesa grávida que, na costa da Bahia, recusa-se a sair de perto da praia, pois aguarda a chegada do marido (supostamente morto). O nascimento do filho dessa mulher configura-se em uma poderosa mensagem de esperança em meio à miséria absoluta. O livro fecha com "Doramar ou A Odisseia" e "Manto de apresentação". O primeiro, um pequeno libelo sobre epifania e memória, trazido à tona por uma empregada doméstica de volta às suas origens. O segundo, um estudo sobre Arthur Bispo do Rosário, e uma defesa da arte como escudo contra a pobreza e a loucura.

Com seu livro de contos, Itamar Vieira Júnior afirma a compaixão como forma de conhecimento e de empatia, sem cair nas armadilhas do sentimentalismo. Suas narrativas incomodam e emocionam, mas não derrapam em fáceis maniqueísmos nem em armações ideológicas superficiais. Sua voz trabalha na contramão disso e busca, na verdade, retirar o véu que naturaliza as desigualdades, para mostrá-las como elas de fato são: desumanas, logo, fora do âmbito da humanidade (esta que a literatura da compaixão de Vieira ressalta e se alimenta).

Ler A oração do carrasco é ampliar nossa consideração até os invisíveis; até aqueles que sofrem e morrem diariamente por não importarem mais para os meios de produção: nem mesmo como material de descarte. A extrema compaixão do olhar de Vieira demonstra para quem o lê que não é necessária uma tragédia de proporções incalculáveis para despertar nossa empatia com o sofrimento alheio; antes, que nos debrucemos sobre aqueles que estão sofrendo quase que de maneira invisível, e percebamos os detalhes dessa dor. Que detalhes são esses? Vieira nos dá.

Em tempo como estes, no qual, em nome da ignorância, da preguiça, do conformismo, da egolatria, e da manutenção dos próprios privilégios e preconceitos, alguns escritores se protegem sob o manto da "autoficção", mantendo-se restritos a seus próprios umbigos ensebados, é essencial sabermos que restam ainda autores como Itamar Vieira Júnior, com capacidade de se colocar no lugar do outro e trazê-lo às vistas de todos, como forma de minorar sua exploração e invisibilidade.

A oração do carrasco é um livro para se debulhar em lágrimas da primeira à última página, pois a única compaixão da qual Vieira é desprovido é a com o leitor.

 

 

 

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O livro: Itamar Vieira Junior. A Oração do Carrasco.

Itabuna/BA: Mondrongo, 2017, 166 págs.

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setembro, 2018

 

 

Tadeu Sarmento é autor de Associação Robert Walser para sósias anônimos (Cepe, 2015) e E se Deus for um de nós? (Confraria do Vento, 2016), entre outros. Em 2017, conquistou o 13º Prêmio Barco a Vapor, com o livro O Cometa é um Sol que não deu Certo, publicado pela Edições SM. Ganhou o II Prêmio Pernambuco de Literatura e o Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura de 2016, com o livro de poemas inéditos Um Carro Capota na Lua, que será publicado no segundo semestre de 2018.

 

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