Recebo agora um livro de Claudio Daniel. Intitula-se Portão 7. É um livro que o autor define precisamente como "reunião de cem poemas breves, construídos na forma do terceto sem rimas". O pertencimento genérico vem a seguir indicado: o haiku, tal como foi definido por Masaoka Shiki.

O volume é dividido por estações, como sucede em livros pertencentes à tradição japonesa e vem acompanhado de um encarte, com oito tercetos traduzidos para o japonês por Misao Kobayashi e por ele mesmo caligrafados.

Se eu fosse escrever uma resenha desse livro que li com prazer e interesse, começaria por discutir o conceito de haiku e haikai. Sim, porque o nome haiku é moderno e representa uma opção em certo sentido ocidentalizada: a apresentação do terceto isolado, como um poema autônomo. Enquanto o termo hokku designa também um terceto, mas que faz conjunto (em princípio) com outro texto (um poema coletivo ou um diário) ou com um desenho.

Mas essa seria uma questão acessória, só despertada pelas palavras introdutórias do poeta, na breve nota em que apresenta o volume.

A questão principal seria refletir sobre o uso da forma do haiku e daquilo que muitos consideram a sua alma: o kigo, isto é, a palavra de estação.

Quanto a esse ponto, muito haveria que dizer. Por exemplo, Claudio Daniel — que estudou o haiku e sua reinvenção no Ocidente — trabalha de forma inusitada os tradicionais "termos de estação", expressões fixas que, numa antologia como a do Blyth, por exemplo, repetem-se à exaustão.

Precisaria de mais tempo de reflexão e escrita (e não só esta hora), para dar conta do sentido dos procedimentos que se destacam. De fato, é preciso ler com atenção uma expressão como "cachorro de inverno", ou "rato de outono", ou ainda "louco de outono" e "viatura de verão", "mulher-primavera", "mendigo de verão" — principalmente porque ocorrem lado a lado com o uso tradicional, como em "lua de verão". É um uso irônico, paródico, uma glosa com intuito de estranhamento ou profanação? Ou uma tentativa de atribuir conteúdo sazonal a eventos, objetos e seres não sazonais? Se for essa última opção, qual o efeito de sentido resultante? Ou melhor: qual o ganho?

A coletânea traz um amplo leque de formas de organização sintática e imagética, mantendo os limites dos três versos. Encontramos ali poemas compostos por três frases, duas frases e frase única. Do ponto de vista da estrutura lógica, poemas compostos por efetiva justaposição e poemas compostos de uma forma que poderia denominar "explicativa", na qual o último verso fornece a chave (resultado ou origem) das anteriores.

Do ponto de vista do motivo ou assunto, a variação é imensa. Temos desde belos haikus, nos quais reconhecemos o "sabor de haikai", até tercetos nos quais tal sabor inexiste, cedendo lugar à expressão crua de uma revolta objetiva, como no caso do último: "manhã em Brasília — / juízes fascistas / relincham". Como este, muitos se encontram, com modalizações várias quanto à intenção crítica e combativa, ao longo do volume, fazendo pendant com outros de extração lírica.

Os melhores momentos, do meu ponto de vista, são os de equilíbrio entre o registro social e a forma de composição tradicional do haikai, a justaposição. Como neste:

 

chuva de primavera

mendiga se agacha

e urina no chão

 

Aqui, além da alusão a um famoso terceto de Sokan, temos uma justaposição por espelhamento e contraste: o alto e o baixo, a chuva fria da primavera e a urina quente da mulher. O quadro, assim, produz o efeito típico do haikai, que é a percepção dos reflexos, das correspondências, da unidade do mundo, enfim, por meio da seleção significativa.

 

E há outros tercetos com real "sabor de haiku", como este, que gira, ele próprio, à volta da sensação brutal do calor:

 

sol de verão

até as moscas

andam em círculos

 

Por fim, antes que este texto escrito às pressas comece a querer estender-se como resenha, uma nota: apenas dois dos tercetos trazem rimas à maneira de Leminski ou Millôr. Um deles é nítida homenagem ao primeiro:

 

vida é viagem

uma só folha

é toda a paisagem

 

É um belo terceto à maneira do poeta de Curitiba, com um certo sabor zen patente, que ele tanto apreciava.

O outro creio que também homenageia Leminski:

 

vencer não é tudo

disse o cego

para o mudo

 

Mas este, quando li, pensei que poderia ser uma justa e digna homenagem ao primeiro inventor do haiku entre nós — o compositor de haigas Millôr Fernandes. Bastaria, nesse caso, uma pequena alteração, que — valendo-me do descompromisso deste texto sem pretensões — me permito fazer, como uma brincadeira entre amigos:

 

ver não é tudo

disse o cego

para o mudo

 

 

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O livro: Claudio Daniel. Portão 7.

São Paulo: Lumme Editor, 2018, 104 págs.

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janeiro, 2019

 

 

Paulo Franchetti é professor titular aposentado da Unicamp e pesquisador do CNPq. Entre outros, publicou, no Brasil, os livros de poemas Oeste, Memória Futura, Escarnho e Deste Lugar (todos pela Ateliê Editorial), e, em crítica literária, Nostalgia, exílio e melancolia — leituras de Camilo Pessanha (Edusp) e Estudos de literatura brasileira e portuguesa (Ateliê); em Portugal, publicou uma edição crítica da Clepsydra, de Camilo Pessanha (Relógio d'Água, 1995), a antologia As aves que aqui gorjeiam — a poesia do Romantismo ao Simbolismo (Cotovia, 2005) e o ensaio O essencial sobre Camilo Pessanha (IN-CM, 2008). Parte de seus trabalhos críticos está disponível em paulofranchetti.blogspot.com.br.

 

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