Não é pequeno o fascínio que um gênero literário como o conto exerce aos olhos de um leitor cuja boa vontade em perscrutar e refletir sobre a expressão artística não esmoreça ante a sua problemática. O conto se presta a interminável especulação, muito em função da extensão com que ele é concebido, sem que com isso as marcas do gênero desvaneçam.

Sim, porque, a título de exemplo, o tchekhoviano Os mujiques bem como o mítico A terceira margem do rio rosiano atendem — cada qual a sua maneira — aos requisitos inerentes ao gênero. Mas quanta diferença subjaz a essa superfície inicial! A extensão do conto certamente é o dado mais imediato, mas ela é uma variante que incide em muitos outros fatores de importância: a ênfase na introspecção do(s) personagem(s); o enfoque no social, ou no microcosmo onde tais personagens transitam; a questão temporal, etc.

O que dizer então a respeito do miniconto, subgênero que desafia por um lado a dramaticidade e a profunda introspecção dos personagens; e por outro desafia o próprio leitor em geral, inimigo empedernido da elipse narrativa, herança estética de Tchekhov e Hemingway, os mestres do conto moderno? Estaria, aliás, o miniconto inserido adequadamente numa categoria condizente com suas particularidades?

São questões que vêm à mente mal o leitor conclui a primeira das oito seções temáticas que dividem Margem de Erro, novo livro de contos da carioca Rosane Nicolau.

Na obra temos uma gama variada de temas sintetizada em rápidos recortes de uma prosa objetiva e diversificada, prestando-se tanto à variação sociocultural de seus personagens quanto à própria temática dos contos. Como exemplo, num conto como Solução final — um conto rap insinua-se uma cadência entre as orações, para o que também colaboram as rimas dentro da prosa.

Como já dito, o livro é dividido em oito seções de contos sintéticos que mal excedem a extensão de uma página, perfazendo um total de 50 minicontos.

As seções consubstanciam a mundividência da autora, ao mesmo tempo em que diversificam o volume. Não há um eixo: o individualismo que se impõe a um contexto ou lugar (a seção Fora de lugar) não apresenta uma relação hierárquica maior que a insanidade sublime (ou digna de contemplação) da seção Desrazão — essa uma das mais belas do livro.

Na louca a balbuciar versos à noite, prestes a se lançar do vigésimo sétimo andar — Ismália urbana que "desistiu das estrelas"; no misógino insano a atentar contra a vida de sua analista; na garota que "aceitava sua loucura" com uma ponta de lucidez… Em todos esses contos observamos um senso apurado de análise do interior do ser humano, tema que prossegue com modulações de teor social (seção Antípodas), das relações humanas com o próprio corpo (Trans-ser), com o corpo do outro (Leis do corpo), com as reminiscências que se sintetizam materialmente em objetos, ou sensações (De memória), etc.

Há pinceladas com tonalidades machadianas, tchekhovianas e drummondianas na obra. O indivíduo que chega à missa de sétimo dia preocupado em entreter-se com os presentes, ignorando o morto (Missa de sétimo dia), ou a namorada que cede aos insistentes apelos sexuais do namorado quando este lhe promete um anel de brilhantes (Sutilezas do verbo dar), em tais contos, para ficar em apenas dois exemplos, observa-se um olhar mordaz, mas de tom sereno, quase conformado com as mazelas do ser humano, além de uma ironia equilibrada que endossa a amoralidade da escritora, desprovida de qualquer intenção de prescrever antídotos para os males do homem.

 

Lirismo ou dramaticidade?

 

Mas voltando às questões levantadas no início dessa resenha: Como apreender a natureza do miniconto? Não é questão de pequeno valor, pois através dela é que o analista pode entender se um livro composto por 50 textos dessa categoria — o que propicia grande margem para erros e faltas — foi bem-sucedido em seu conjunto.

Primeiramente, uma distinção prática pode nortear o caminho: lirismo e dramaticidade (no sentido de ênfase na ação narrativa). No livro Gênio, os 100 autores mais criativos da história da literatura, Harold Bloom afirma com destreza que no conto "intensidade lírica pode substituir dramaticidade". Isso quer dizer que um conto pode suster-se para além de um fluxo narrativo de acontecimentos cuja concatenação leve ao desfecho satisfatório. Se isso ocorre no conto, parece ser via de regra no miniconto, ao menos se o livro em questão for Margem de erro.

Nele, até mesmo por conta da limitação, muitos textos sustêm-se pela epifania ou o insight, o que, a meu ver, exige do artista uma disposição mais rigorosa na escrita, a fim de que não haja desníveis no conjunto. É imprescindível cortar o supérfluo, para que o leitor vá, de lume a lume, numa espiral sempre crescente.

Por vezes Rosane consegue fazê-lo, auxiliada por um tino muito bom no uso das metáforas, como em Mesmo assim: "A caçula suplicou. A visão do inferno ou de prisão era efêmera. Queria permanecer ali. Mesmo assim. Entre grades".

Mas, em seguida e num outro conto (Vida de um parágrafo só), o ritmo não se mantém: "Aos dez anos, era a única do grupo que conhecia sintomas de doenças. Aos dezoito, reconhecia no próprio corpo alguns deles. Teve câncer aos quarenta e sete. Foi enterrada em dois meses. Feliz".

No conto acima, reproduzido integralmente, o insight é menos luminoso que em outros tantos bons exemplares, fazendo com que o livro seja irregular nesse sentido. Mesmo que se argumente que o livro é dividido em seções e que, por isso, o tom forçosamente deva ser diverso, constata-se numa mesma seção essa variação. Mas claro que isso é algo que tende a ser relativo, uma vez que não há como mensurar a impressão que cada conto venha a deixar no espírito de cada leitor. Isso ocorre amiúde em livros de poesia, o que é revelador para o caso em questão. Ainda assim, é inegável que a autora, possuindo instrumentos que manuseia bem, os negligencie em certas partes da obra.

Por fim, o livro nada contra a corrente. Se parece certo que o conto não é o gênero mais apreciado pelo leitor moderno, o miniconto então haverá de forçosamente suscitar mais hesitações. Talvez o leitor esteja saturado de uma rotina composta de episódios descosidos, de momentos fragmentados em suas relações sintéticas e utilitárias com tantas pessoas com quem não compartilha, por vezes, qualquer empatia. Ao invés disso, ele parece buscar algum sentido nesses estilhaços de vida, procurando um fio que delineie tantos dias irrelevantes, para um final catártico, reconfortante. O sentido da vida, enfim.

No entanto, contraditoriamente, parece adequado que Margem de erro seja lido por esse leitor, justamente porque suas exíguas dimensões parecem condensar o suprassumo da experiência que, muitas vezes, o leitor (ou mais amplamente, o ser humano) alcança, à custa de muito palmilhar uma trilha entediante, cansativa. O livro, por implicação, também pode conduzir o leitor a uma trilha mais retirada e espessa (nos dias atuais): a da poesia.

 

 

[Publicado originalmente no jornal Rascunho, em agosto de 2014]

 

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O livro: Rosane Nicolau. Margem de erro.

Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2013, 126 págs.

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setembro, 2018

 

 

Clayton de Souza é escritor, autor dos livros Contos Juvenistas (Patuá, 2013) e Versos de Imprecação Contra o Mundo (Penalux, 2018) em colaboração com o poeta Wítalo Lopes Moreira. Colaborador do Jornal Rascunho. Reside em São Paulo.

 

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