Inicio esta resenha falando do caráter popular do livro de Sidnei Schneider, poeta e contista, premiado em ambas as categorias, e com diversos livros em seu currículo de escritor. Não só o conteúdo do livro nos remete diretamente ao povo brasileiro (em todos os seus extratos sociais), mas também a própria concepção da obra: editado pela União Metropolitana dos Estudantes Secundaristas de Porto Alegre (UMESPA), numa tiragem extraordinária de 5000 exemplares, ele segue os padrões dos livros de cordel tão comuns no nordeste brasileiro e que se tornaram uma espécie de leitura obrigatória nas salas de aula daqueles estados da nação brasileira.

Seguindo a fala do escritor Dilan Camargo, na noite de lançamento da obra, concordo que este livro também seja leitura obrigatória nas escolas do Rio Grande do Sul. Se todo livro é uma tessitura, e aqui faço uma menção ao poeta Jorge Fróes [o outro debatedor], há que lê-lo como quem tece uma roupa ou um tapete persa: prestando atenção nas nuances, no colorido vário das personagens, nas entrelinhas, no dito e no não dito.

De rua e sangas divide-se em dois contos que, mesmo separados por tempos e temáticas diferentes, se entrelaçam, como os fios de um tapete, unindo-se através da singular maneira de expor as mazelas sociais, tão caras à vida literária de Schneider. O autor, dessa maneira, põe a nu os preconceitos, as ideologias, a alienação das elites e de uma classe média suficientemente abastada que, ora veem o povo como uma espécie de "burro de carga" a ser explorado, ora veem o povo como pessoas sem amor ao trabalho e sem perspectiva de vida, que não seja viver "debaixo da ponte". O escritor também revela a alienação ideológica, quando a personagem Teteka, do conto "Comida", quer a toda prova imitar os norte-americanos e cria assim, um "Dia de Ação de Graças" à sua moda. Com a sutileza que lhe é característica, Schneider mostra a perversidade da personagem, que, esbanjando comida em seus freezers, resolve repartir com os "desvalidos" um pouco do que tem.

Ao deduzir que as pessoas "debaixo da ponte" irão apreciar seus pratos prediletos (na realidade, todos eles, marcas registradas dos hábitos da elite), ela prepara guloseimas como escargots (lesmas comestíveis, caro leitor!), lagosta, uma galinha congelada e, leva junto um ikebana, para agradar aos olhos dos menos favorecidos. No entanto, para desespero da protagonista, os três "desvalidos" que ela encontra arremessam ao arroio Dilúvio seus petiscos, e o conto termina numa espécie de epifania ao contrário, numa fina ironia, quase trágica, que reproduzo a seguir: "Sentaram-se em torno das pedras fumarentas, inconsoláveis. Gigante e avermelhado, o sol se punha atrás das ilhas do Guaíba, deixando um rastro sobre as águas. De mão em mão, passaram o arranjo floral, e, por teimosia ou desagravo, o comeram".

Em uma linguagem fluente e poética, o escritor vai delineando os personagens de seus contos. Em "Cipó, o contador de causos da rua", Sidnei usa e abusa de marcas da oralidade, próprias da região, de termos típicos, todos eles, seja para caracterizar o menino que inicia narrando a história, seja para mostrar as diferenças sociais entre, por exemplo, a família do menino, Seu Lírpio (representante da burguesia ascendente) e Cipó, o contador de causos, de origem humilde, negro, e por isso mesmo, desprezado por certos descendentes de alemães. É notável a construção do preconceito racial nas entrelinhas do conto, que culmina numa tensa disputa por atenção entre o Seu Lírpio e Cipó. Feito uma boa história popular, Cipó ganha a disputa, ou melhor, a estima das crianças e da família, seus ouvintes e patrões ao mesmo tempo. O pai do menino que narra dá a Cipó uns "trocados" e finaliza dizendo que irá terminar o trabalho que o outro havia começado, mas não tivera tempo de concluir. A questão racial perpassa, assim, toda a narrativa, para realizar, ao final da história, uma síntese: somos todos iguais.

Concluindo, podemos dizer que Schneider fez uma linda incursão pelo mundo do popular, seja na forma de realizar o seu livro, seja em sua escrita e na construção dos personagens e das narrativas. Repito aqui, as palavras de Dilan Camargo: que todos possam ter acesso a este livro, e que esta leitura tire-nos do lugar de conforto, da alienação tecnológica, ideológica, da sociedade de consumo, e que nos coloque de volta no lugar privilegiado de leitores/tecedores de histórias. Cada um a seu modo, lendo/tecendo o mundo à sua volta.

 

 

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O livro: Sidnei Schneider. De rua e sangas.

Porto Alegre: UMESPA, 2018, 24págs.

Distribuição gratuita.

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De rua e sangas é a primeira edição de projeto de promoção da leitura da UMESPA, orientado para escolas públicas. Trata-se de um livreto de 24 páginas, com dois contos e tiragem inicial de 5000 exemplares. Por intermédio dos Grêmios Estudantis, direção das escolas e professores de literatura interessados, os livretos são distribuídos gratuitamente, com um dia de debates em sala de aula, sendo que em alguns ocorre a participação do autor: www.umespa.org.br | facebook.com/UMESPA60ANOS.

 

 

setembro, 2018

 

 Lívia Petry Jahn é Pós-Doutora em Literaturas Lusófonas pela UFRGS/CAPES, escritora, poeta, contadora de histórias.