Cena de Pacto Sinistro: Guy Haines (Farley Granger) e
Bruno Antony (Robert Walker) lutam em carrossel desgovernado

 
 
 
 
 
 
 
 
 

Não tenho a pretensão de escrever ensaios acadêmicos, não sou nenhum scholar de cinema, mas vi tantos Hitchcocks, e com tal frequência e repetição, que posso pelo menos arriscar visões mais generalizantes de sua obra. O homossexualismo, por exemplo, aparece nela, não só em Murder, Festim diabólico e Psicose, mas principalmente em Pacto sinistro, filme ousado para seu ano de produção, 1951.

Não fosse por todo o resto, Pacto sinistro valeria por oferecer uma lição de como abordar um assunto ingrato (e impensável para a década de 50, no contexto do cinema comercial de Hollywood) sem uma só menção explícita, sem uma apelação sequer. Quem quer que tenha dúvidas do talento de Hitchcock para manipular imagens que conseguem sugerir mundos e fundos sem perder a superfície elegante, a narrativa fluente e aparentemente empenhada apenas em entreter, seduzir, assustar, precisa ver este filme.

É preciso dizer tudo aparentando dizer nada, ou dizendo muito pouco, apenas o suficiente para seduzir o público, que depois poderá decidir do que viu. Mero entertainment? Não, é a condição para um mergulho nas águas de um realismo superior à "realidade".

A história é uma sublimação em crime de um sufocado amor entre homens. Criss-cross, "um pelo outro", propõe o mais ousado deles.  Ele é Bruno Anthony, milionário desocupado, e o outro, Guy Haines, tenista em ascensão que está para casar-se com a filha de um senador. Unidos por acaso no vagão de um trem de luxo, eles falam de suas dificuldades, Bruno com o pai, Guy com a ex-esposa, que não quer lhe dar o divórcio. Insinuante, Bruno propõe um pacto: matará a ex-esposa, que estorva seus planos de ascensão social e, em troca, Guy deverá matar-lhe o pai. Argumenta: em ambos os casos, seria o crime perfeito, pois, cometido por estranhos, estaria privado de um elemento essencial: a motivação.

Desde o início, filmando os pares de sapatos que procedem de pontos diferentes e se esbarram no vagão, propiciando o encontro, Hitch deu a este um caráter de necessidade, de fatalismo. Guy vê Bruno apenas como um desses maçantes que às vezes nos abordam em viagens, como um maluco inofensivo, e finge aceitar a ideia para livrar-se do incômodo e um pouco também porque fora bastante adulado. Esta pequena concordância íntima, contudo, detonará consequências trágicas, na linha tradicional do Mestre, que pune leviandades com catástrofes. O cineasta parece estar sempre repetindo que, para enredarmo-nos no Horror, não é necessário mais que um pequeno e frívolo sopro do Acaso, um pequeno descuido de consciência lassa.

     A obra transpira ambiguidade. Bruno é, obviamente, um duplo negativo de Guy, representa a materialização de seus desejos inconfessáveis, seus devaneios de violência postos em prática. Depois de brigar com a ex-esposa em Metcalf, onde o trem o deixara, o tenista diz à namorada Anna, no telefone, que seria capaz de matar, estrangular essa mulher que não concorda com o divórcio. Nesse exato momento, o trem que leva Bruno passa ruidosamente pela cabine de onde fala e, a seguir, aparecem as mãos de Bruno contorcendo-se na avidez de estrangular, exercitando-se para o crime concreto que acontecerá num parque de diversões.

     Um crime antológico: começa por um processo de sedução, pois Bruno sabe que a ex-mulher de Guy é pouco séria e é muito seguro de seu charme, e termina num estrangulamento que se consuma como se fosse um desejo partilhado pelo assassino e sua vítima. Temos pena da mulher — ela deseja esse homem que a segue e que é um bonitão — mas estamos preparados para achar "bem feito" que ela acabe tão mal. Bruno leva seus óculos a Guy para provar a façanha e efetuar a cobrança. Criss-cross. Apavorado, o tenista hesita entre ficar ao lado do maníaco ou chamar a polícia, e a cena em que passa para o lado de Bruno no portão, a fim de se esconder de uma viatura, é uma ilustração perfeita dessa relutância. Parte vital de seu ser está com esse homem doente; a cena do portão tem o frenesi de um beijo proibido que não se consuma, que está no rosto debochado de  Bruno; ele assedia Guy de uma maneira oferecida, coquete, idólatra, procurando aliciá-lo de qualquer modo. O prodígio da elegância de Hitch é que isso nunca é vulgar. Pois é evidente que a cumplicidade que Bruno exige é de natureza sexual, o "um pelo outro" do trato consuma-se na multiplicação dos signos de cumplicidade: isqueiro com raquetes de tênis cruzadas, cruzamento ferroviário, sapatos que se tocam, grade de portão que veda e aproxima. O "troca-troca" sonhado é denunciado por todos esses signos pouco inocentes.

     Noturno, ubíquo, imprevisível, Bruno é um credor implacável e velado, um indício exterior da consciência culpada de Guy, e aí fica patente a conexão misteriosa, erótica, que existe entre Bem e Mal, entre o lado da claridade e o lado das sombras, desejosos um do outro.

    Há cenas perfeitas: numa partida de tênis, sentado na arquibancada, Bruno está completamente imóvel e vigilante; enquanto os espectadores todos se movem acompanhando o ir e vir da bola com a cabeça, ele tem a perigosa rigidez dos que possuem uma ideia fixa. Nunca essa verdade teve uma tradução cinematográfica tão simples e brilhante.

 

 

AMANTE REJEITADO E FURTIVO

 

 

Amante rejeitado e furtivo, Bruno aparece como uma silhueta negra contra a brancura do Pentágono. Sua mãe, uma ociosa que quer ser pintora, aparece numa cena que consegue ser tragicômica, hilariante e assustadora, mostrando ao filho um quadro de que ele debocha vigorosamente, dobrando-se de rir. Sempre mães, sempre filhos para os quais os pais é um rival perigoso, uma ausência, um estorvo concreto ou imaginado. O horrível quadro que a mãe pintou, na tentativa de fazer um São Francisco, é, para Bruno, uma reprodução exata do "velho".

Por precisar de outro modelo masculino, de uma paternidade mais de acordo com seus desejos amorosos e hostis, aproximou-se de Guy e matou a mulher do tenista, querendo como que substituí-la; por isso, tem a filha do senador como inimiga. Signos ambíguos, que não param de fundir-se e desdobrar-se na dinâmica da narrativa. Bruno é trágico, Guy é apenas um arrivista medíocre, covarde. Ao fim, depois de uma tensa partida de tênis, jogada contra o relógio, seguido pela polícia, Guy tem de se livrar de seu demônio por um ato de audácia extrema, auxiliado pela noiva e a futura cunhada (bem sintomático: é a guerra entre as hostes femininas e masculinas dentro do herói). Buscando impedir que Bruno o incrimine, colocando um isqueiro seu no parque de diversões onde a ex-mulher foi estrangulada, ele vive um momento tão crítico quanto um pequeno Juízo Final. Símbolo do pacto e da inversão, o isqueiro é o trunfo de Bruno: simboliza a capitulação involuntária de Guy, é a prova da existência de um «eu» clandestino. Para recuperá-lo, neutralizar seu potencial de acusação (em mais de um sentido), é necessário que Guy lute com Bruno num carrossel descontrolado, luta que se parece um pouco com um engalfinhamento sexual. O demônio morre, mas até o último suspiro quer incriminar Guy junto à polícia, e só expirando é que sua mão, vencida pela morte, se abre para deixar aparecer o isqueiro, agora prova da inocência do tenista. O que era denúncia vira libertação, numa dessas operações geniais de transmutação de símbolos das quais Hitch tinha o segredo. E Guy pode retornar aos braços de Anne. 

Para que se estabeleça um pacto com o Mal, não é preciso uma aceitação formal: o próprio desejo, ainda que reprimido, pode consumá-lo. O pecado é profundo, pensa Hitch, e nossas almas são potencialmente más, bastando muito pouco para que nossa malignidade (Pecado Original) tome forma. Bruno é antagônico de Guy, para quem quiser ver no filme apenas um thriller bem feito, mas, na verdade, é o próprio Guy subterrâneo agindo em obediência a uma verdade oculta.

Ele nunca aceitou sua parte no pacto, repeliu o que Bruno lhe propôs (a eliminação do pai) como uma ideia impensável, demente. Mas, decidido a contar ao «velho» de Bruno que o filho é louco e deve ser internado, vai à casa dele com um revólver. Por quê? Sobe para um quarto à espera de encontrar o homem, mas, na cama, é o próprio Bruno que dorme, usurpando o lugar do pai e fazendo ali o papel da mãe que espera por Guy, pai substituto e idealizado. O revólver significa que Guy tanto podia estar pensando em defender-se de Bruno quanto em executar sua parte no pacto.

Com seu refinado culto à ironia e à alusão, Hitchcock acharia a pressão de militantes "gays" pelo "politicamente correto", se ainda estivesse vivo e filmando, uma monstruosa chatice, uma intromissão inaceitável na sua arte. O que ele fez com seus homossexuais foi, por vezes com poesia (pois o Bruno é, para muitos, o melhor de seus vilões), por vezes com um viés carregado da suspeita, da culpa, da tensão de sua formação católica quanto aos "pervertidos" e "desviados", trabalhar soberbamente com metáforas, mantendo seu padrão de senhor das ambiguidades e da diversão. Mostrando, sem querer levantar teses, apenas com o cuidado de contar bem uma história e trabalhá-la com originalidade artística, que pactos e aversões, no mundo do desejo são, por vezes, quase a mesma coisa. Nenhum homem é senhor de seus contrários, que se impõem à imaginação e ao desejo e podem ter uma longa vida reprimida passível de aflorar a qualquer momento. Nisso, Hitchcock teria muito a dizer sobre os homofóbicos.

 

 

setembro, 2018