POR QUE NÃO SER?

 

 

Um verme esquecido

Um cão ou uma placenta

Já que não sou tão gente

Antes era um remoinho

Corria sem tropeços

Levando farrapos estendidos

E quando chegava na calçada

Combatido fui, pelos eminentes

 

Então! Por que não ser?

Uma hóstia expulsa do sacrário

Um tolo desgraçado

Já que todos são deuses, sensatos

Conhecedores das minhas fraquezas.

 

 

 

 

 

 

COM O CORAÇÃO DE VER

 

 

O que eu olhava o mundo fingia

Era apenas uma multidão

A luta continua

A incerta vitória

 

O vício de não ver

Os que de farrapos

Não se vestiam

Ah, era uma cegueira

 

Vísceras acolá em recipientes

Moscas lá, em vigília

Vontade de venerar a carne

 

A serpente em rio

No banquete dos pobres

Ouviam-se as vozes

Algumas santas e doces

Foram eles: os vagabundos

 

 

 

 

 

 

CASTELO

 

 

E se a cidade fugir?

Fugir para longe, longe, tão longe

Conforme fugiu Deus até aos escombros do universo

Sem nunca ter ido a lugar algum

Preferirei sucumbir, dar o meu cadáver ao chão

 

Conheço um castelo

Lá vi o meu amor

Que jamais o amarei

 

Dizem que sou o único

Sobrevivente ainda morto

Já que os mortos estão vivos

 

Mas naquela entrada

Que mostra as entranhas

Das veredas não concebidas

Dizem-me que ainda há

Aposento para sobreviver

Se a cidade fugir, sem nunca ter ido.

 

 

 

 

 

 

MEUS FEITIÇOS

 

 

Angustiado no sol do meio-dia

Não vi a esperança

A queimar sonhos

Na fogueira dos sintomas

Voluntários da alma

 

A carne aloja

Os últimos demónios

Que deram cabo

Das asas alugadas

Por um rio de melancolia

 

O meu sangue

É uma urina

Veio desgraçar as hormonas

Com deficiência de rabiscar

Uma nádega da mulher

 

Não sei o que será de mim

Se a saliva e as fezes

Se tornarem alimentos

Nas autarquias de roubar

Os cadáveres do túmulo

Desta alma-milênio

 

 

 

 

 

 

VERDADES SÃO SAUDADES

 

 

Palavras não são problemas

Problemas são as injúrias

Amores não são paixões

Paixões são emoções

Sonhos não são verdades

Verdades são as realidades

 

Quando de lágrimas no oceano

Sinto a falta de uma gota

Visualizo a vida de um humano

Escondida nos escombros de uma bota

A esperança vê e calça na sua rota

 

O homem já não é homem

O pão não tem fermento

Que dá força para matar a fome

 

O mundo não tem firmamento

Os anjos não amam, o amor temem

Universo sem alguém supremo

Deus a vive as aventuras do homem

 

Dos tempos que fui ninguém

Fui perseguido pelo amor

Mesmo sendo uma criança.

 

 

 

 

 

 

"AMAR COM FALHAS"

 

 

Assim que eu conhecer

O espaço triunfante

Da minha lealdade

Também conhecerei o amor.

Quem saiba eu não me canse

De girar o mundo

Como o único repetidor

Do amor com falhas.

 

Talvez porque os que amam

São perfeitos, mas não felizes

Encantam a paz, acertam felicidades

Mas nunca o eterno consolo.

 

Não sou perfeito e nem feliz

Mas tenho o eterno consolo

Do amor de todas as falhas.

 

 

 

 

 

 

"INSTANTE"

 

 

E se visse o mundo num instante?

Ah, Nunca mais O perderia

Num instante de bobagem

 

E se visse as flores?

Pegadas, pétalas, cabelos

E outros malabarismos sentimentais

Ah, jamais faria os afazeres do instante

 

E se visse um coração com os olhos de ver?

E nunca com o coração de não ter olhos?

Ah, nunca mais amaria num instante

E faria o meu instante em cada instante

De todos os instantes da minha vida.

 

 

 

 

 

 

CARECER AMY WINEHOUSE

 

 

Não pedi silêncio

Um cigarro rubro

Estrépito dos estéreis

Pedi a revivescência

A incandescência da lâmpada

Um candeeiro a petróleo

Na cozinha da fumaça.

 

Uma panela preta

O jazz acústico da míngua

Amy Winehouse de volta

Para me dizer (meu amor)

Com quantas gotas de vinho

Uma deusa falsa morre?

 

 

 

 

 

 

KALUNGA NÃO ERA SONHO, É A MORTE

 

 

Num copo de água que me matou a sede

Estava dissolvida a morte que me matou a vida.

Ela seguia-me de ruas para avenidas

Mas lá iam os olhos repletos de ambição para ver o firmamento

Mas lá ia a vida repleta de vida, como um atleta em corrida

Mas vinha o tempo repleto de tempo para chegar ao meu tempo

E projectando o meu dia de partida

Mas lá ia a saudade repleta de vaidade da minha mocidade

Mas lá ia o amor repleto de ambição procurando outro coração

 

Num andar das trevas recebi o tiro do meu atentado

Ele seguia-me na escuridão à procura de um beijo

Pois o coração já sofria de desejo.

Mas lá ia a vida repleta de amor para sarar a paixão

Mas de lá chegou um anjo e me sarou com o hino da oração

Mas de lá vinha o mito para me dizer que precisava de um ritual

Mas de lá vinha o profeta para me dar uma divindade

Mas de lá chegava um demónio para me reencarnar num animal

Mas de lá vinha a verdade para me dar uma liberdade

 

Num pão partilhado que me matou a fome

Estava posto o veneno que matou a vida.

Encontrava-o nas mãos dos falsos inimigos,

E verdadeiros mendigos.

Mas de lá vinha a hóstia para me alimentar

Mas de lá vinha a água para me matar a sede

E dos céus caía o sangue para me embriagar

E do além eu via a vida repleta de vida para lutar com a morte

Mas de lá vinha a verdade com véus para limpar o veneno

Mas da alma vinha a fé para tentar dar-me uma sorte

Mas de lá vinha o inimigo disfarçado de humano.

 

 

 

 

 

 

UM POEMA NA PEDRA

 

 

Este chão é tão negro…

Negro como a pele

A pele do africano

Oriundo do carvão

Mas cá pisam todas as raças

Deus fez para os homens

E não teve nenhuma excepção

 

Este poema é inútil

Por ter sido escrito na pedra

A pedra preta

Como a cor da minha mãe

Que me nasceu nesta África

Que jamais terá paz

 

Este escritor é tão esquecido

Esquecido por não possuir

A cor azul na sua pele

Como as águas

Que formam o atlântico

 

Este mundo é tão ingrato

Ingrato como o amor

O amor inconveniente

Inconveniente como as seduções

Que enganam os homens frágeis

 

Esta verdade está na pedra

A pedra de um pobre

Que a usa como sua escova

Para lavar as suas pernas

As pernas primitivas

Que nunca conheceram

O calor de uma simples bota.

 

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Leandro Lirólea é o pseudónimo de Leandro Mateus Miguel. Poeta angolano, nascido a 18 de setembro de 1992, em Camabatela-Ambaca, província do Cuanza Norte, Angola. Começou o seu percurso artístico como bailarino e artística plástico e, mais tarde, como poeta e declamador da Escola Missionaria São Francisco de Assis, Camabatela, onde fez os seus estudos primários e secundários. Promove os seus poemas e músicas através da emissora de rádio municipal de Ambaca. É estudante de Linguística Portuguesa na Escola Superior Pedagógica do Cuanza Norte, Angola. Publicou os primeiros poemas na Revista "Debaixo do Bulcão — poezine" em Almada, Portugal, em 2017, 2ª e 4ª edições. Além de poeta é bailarino, ensaísta, artista plástico, atleta e músico.