Manicure

 

 

Tirava as cutículas de cada afeto

— um a um, dedo a dedo —

com cuidado

para não fazer sangrar

o enredo.

 

 

 

 

 

 

Paranoia conspiratória?

 

 

Pois vejam que coisa suspeita:

um comboio militar na estrada

e uma placa: mantenha a direita.

 

 

 

 

 

 

Mais um motivo

ou

Poeta, por favor

 

 

traduzida ao português

a palavra árabe tiza

tem o mesmo som

de pescoço em francês:

cou

 

portanto tenha dó

poetisa

é a sua avó

 

 

 

 

 

 

Bilhete

 

 

É outro o quadro, Vincent.

Espanto os lobos, Woolf.

 

Abdico a lâminas, lexotans.

Renuncio a cordas, gás de cozinha.

 

Adeus às armas, Ernest.

Lamento trair-te, Judas.

 

Já não durmo sob rodas

nem maltrato arranha-céus.

 

Prefiro o suor ao surto;

ao sangue, o sêmen.

 

 

 

 

 

 

Balonismo

 

 

É preciso gás

e é preciso algo mais. Soltar peso a peso

como quem da sombra, aos poucos, se desfaz.

 

É preciso vento

(é preciso menos). Prescindir da espera,

despir-se das horas, preservar o tempo.

 

É preciso alento

maciez de gente, olhares bem ali

ali no ar quente: leveza pra subir.

 

 

 

 

 

 

Carne e trigo

 

 

As mãos matemáticas do pai

transmutam-se

casando carne e trigo.

 

O riso afaga o kibe,

envolve a kafta,

louva as beringelas.

 

Pacificado o domingo,

nas bocas ocupadas,

o grão de bico

silencia o sal das línguas.

 

O aroma de hortelã

amansa as arestas da mesa.

 

Canela adocicando a pimenta:

assim é o tempero sírio.

 

Depois o café

arenoso e forte.

A borra no fundo da xícara

desperta piadas com rima.

Sempre as mesmas —

sempre a mesma família.

 

Mas antes o doce

(e que doce):

nozes manteiga semolina

 

nós e o passado.

Logo ali na esquina.

 

 

 

 

 

 

No ar

 

 

Há uma palavra no ar

tento fisgá-la em vão

com essa vara alada

de versos.

 

Há uma palavra que afunda

tento trazê-la à tona

com essa rede rasgada

infecunda.

 

Imploro a palavra-peixe

tento salvar-me a tempo

do naufrágio que chamam

silêncio.

 

 

 

 

 

 

 

~

 

 

nunca foi

muito popular

como então

diria não

quando as palavras

convidavam pra brincar?

 

 

 

 

 

 

Sonetic-tac

 

 

Dezembro não é mais alvo nem mais cinza

que qualquer outro mês. Vê se sai dessa.

Por que ser mais herói ou mais ranzinza

se aqui nada termina ou recomeça?

 

Quando muito, espelhando os outros onze,

brinca de vida e morte com a ampulheta

ergue uma estátua ao tempo em falso bronze

recicla o mesmo comercial careta.

 

Para com isso. Janeiro não salva

nem traz com ele alguma boa nova.

Nenhuma época é mais cinza ou alva

 

que qualquer outra, salvo se estás morta.

O ano não termina, só desova,

e o lar de Cronos nunca teve porta.

 

 

 

 

 

 

~

 

 

Cientistas anunciam

nada mais

nada menos

que a morte do nada

 

não é que não haja nada

é o contrário:

não há O nada

 

se é assim

se algo sempre ocupa o espaço

até do que partiu

o que explica

tanta falta, esse vazio?

 

 

 

 

 

 

Hipóteses

 

 

Porque o silêncio

pode não ser mais do que surdez

talvez

 

Porque o desejo não definha

apenas migra

filho pródigo quando em vez

 

Porque você pode desistir

da solução e da rima

nunca da poesia

 

Porque nem sempre que está claro

é dia

fevereiro tem 28 noites

e ninguém vai devolver as outras três

 

Porque o bem é bissexto

o mal pode não ser puro

mas meio a meio e todo ano

já é demais para quem sonha

 

Porque há porquês em latência

porque há insuficiência

 

perguntamos.

 

 

 

 

 

 

Nova conjugação

 

 

eu era

tu Eros

 

 

 

 

 

 

Poemeto narcísico

 

 

Tá a fim

de mim?

e o lago respondeu que sim.

 

 

 

 

 

~

 

 

nem Hades

nem Olimpo

arte que é arte

mora no limbo

 

a Magritte

toda a razão

aquilo não era um cachimbo

a palavra pipe

também não

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Laís Chaffe (Porto Alegre/RS) publicou Segue anexa minha sombra (Class/Bestiário, 2018) Carne e trigo (poemas, Castelinho Edições, 2012), Medusa (poemas infantis, Casa Verde, 2011), Minicontos e muito menos (Casa Verde, 2009) e Não é difícil compreender os ETs (contos, AGE, 2002). Participou de diversas antologias, entre elas: Blasfêmeas: mulheres de palavra (2016), Festschrift para Assis Brasil (2015), Coletânea de poesia gaúcha contemporânea (2013), Contos do novo milênio (2006). Está à frente do projeto Cidade Poema, que vem levando poesia às ruas e a espaços públicos desde 2009; e do selo editorial Casa Verde. Roteirizou e dirigiu o documentário Canto de cicatriz (2005, prêmio Direitos Humanos no Rio Grande do Sul e de melhor vídeo independente brasileiro em Gramado, entre outros). Também é roteirista e diretora do curta-metragem Identidade (2002) e roteirista e produtora executiva do curta Colapso (2004). Graduada em Jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, trabalhou no Correio do Povo, no Jornal do Comércio, na Rádio Bandeirantes, em Porto Alegre. Entre 2012 e 2014, foi diretora do Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul (IEL). Mais informações, aqui: www.chaffe.com.br/.