DE ENTRETANTO

 

 

Sem ordem jurídica nem autorização pessoal

sem ética nem pudor, à força, a ferro e fogo

torna-se alguém íntimo de outrem de repente

 

Logo vem a moradia conjunta e a partilha

de copos, de gavetas, inclusive do invisível

E ninguém solicitou a opinião das escovas

 

Quiçá pudesse ter sido com outra pessoa

ou até poder-se-ia viver fora da intersecção

são questões que se devoram na permanência

 

Entretanto não há rumores sobre abandono

sobre fuga nem sobre derruição das paredes

Por hora, ambos convivem muito bem à mesa

 

 

 

 

 

 

Autorretrato

 

 

Existe um toco, torso
Transpõe-se para o mesmo lugar, vago
É óbvio e irritante, tosco
Seus olhos sorriem mortos, opacos
em castanho seco e pesados
Dorme em intervalos e cavalga-se. Sim, de Peixes em Touro, é um cavalo
Ainda não teve a filha, resta-lhe os livros

Não é ingênuo nem cínico, é irônico, quiçá obtuso, abismado
Sobrevive a insuficiências aos cortes, jamais parco
A cabeça é de ouriço com espinhos amputados, um pedregulho
Não fabrica distâncias, mas as provoca pelos ossos

quando não, emprega os lábios
ou furo na parede visto pelo outro lado

Parece jovem e passado, velho e desmedido
É sinistro de perna e braço, um ovo ao avesso
e quando sai, não passa do próprio quarto
como se avistasse adiante apenas um palmo
Sofre de preguiça, mas não para, e quando para, inverte o corpo
Evidente livro fácil, não se importa nem um pouco
Teima como se jogasse truco o tempo todo

embora desconheça este e outros jogos
Lê em posição de mocho, como um rinoceronte ladeando um tronco

Anda para aqui e para lá, de ida e volta, entre espasmos

jamais surtado nem doido, como quem pensa, embora micróbio

De resto, espera que o próximo ano dê certo

prepara-se para incessante inverno

e tardes de mais perdas entre os dedos

Ancora-se na desistência e move um encouraçado a sopro

Sobretudo, da medula e das veias até os pelos, incluindo os cílios

acredita no povo, toda gente que resiste de novo

Não sabe se tem arestas, mas se tem, não acumula pó nem outros restos

Acredita no amor, e para encontrá-lo

inventa lamentos debaixo do assoalho

Cúmplice das paredes, lembra-se dela pelo cheiro

dela, a que singrou no vento depois do último beijo

Talvez seja um copo, onde uma maré sobe e desce entre nervos

e, mais tarde, enquanto houver um ano que seja o próximo

garantirá despir-se de seus óculos quebrados e sem conserto

em formato de palimpsesto dele mesmo

Um rio dragado, um disco furado

existe um toco, torso

 

 

 

 

 

 

Revelação

 

 

Da sacada do apartamento —

como se de um observatório

em que o corpo todo e a mente

e instrumentos, paredes, teto

e o piso onde os pés pisam firmes

congregam-se a tudo existente

 

as coisas e os microorganismos

o brilho de estrelas pretéritas

o luzeiro do sol, ainda

que a hora badale madrugada

o ir e vir dos ônibus e

o entre rapidez e demora

 

o amor, seu sono e suas drogas

cães que passam, farpas e traças

nas gavetas e guarda-roupas

os mitos que restam à história

incluindo nisto o dinheiro

a angústia e a ausência de paz —

num todo de tudo num instante

de continente e conteúdo

expostos, simultaneamente

em carne e sangue e vãos e em ossos

absoluto o próprio absoluto

revela-se e logo se esconde

 

Revela-se aqui da sacada

mesma, e se esconde dela própria

e não sendo ela, mas contendo

a matéria e a ideia de

sua forma, é também lá fora

dentro da abóboda do mundo

 

e fora deste, estando dentro

do corpo cósmico da elipse

(todo o universo), revela-se

e se esconde também ali

na paisagem do aeroporto

na melancolia e na tarde

 

como uma rosa, porque nunca

é estranha a nada — pode ser

feita de plástico ou de pétala

suporta chuva e outonia

presenteia a pessoa amada

ou simplesmente existe aí

 

 

[Poemas de Meditações. Martelo Casa Editorial, 2015]

 

 

INÍCIO

 

 

Pontualmente, há sempre isto

lugar e hora

 

Certamente, as cartas sabem

de um branco a outro

toda margem é um começo

 

Provavelmente, tudo cabe

em qualquer buraco

 

Infinitamente, desde a partida

o amor jamais ignora que

se detém num limite

 

Permanentemente, lugar e hora

não se desfazem

 

Indubitavelmente, tudo sob um exame

num dimídio ou noutro

o fim é um detalhe a gosto

 

 

 

 

 

 

EM MAIS UM MARÇO

 

 

Como quem carrega outra idade

tenho comigo invernos de anos atrás

no outono de mais um recordado mês de março

que em incêndio consumo já, agora mesmo

cultivando as cinzas que ainda serei

a lavrar com o horizonte entre os dedos

o fruto que almejo sem chuva à mão

Ninguém perde a atenção sobre isso

e dizem de mim que sou taciturno

pra dizer que sou um cadáver na contramão

talvez baldio, um cedro sempre desfolhado

talvez um descampado cemitério

de memórias num labirinto em torvelinho

feitas de cálcio, do cálcio duro dos fósseis

Porque uma primavera se deixa vislumbrar

e se deixa abrindo o solo sob seus pés

acima do solo sob a chuva ausente

a engolir o rubor ainda inacessível dos verões

me sinto e me deixo primitivo, porém

jamais um fóssil, e menos ainda uma relíquia

apenas um corpo passando preterido pelo pretérito

 

 

 

 

 

 

MUNDO À VISTA

 

 

Não poderia restar nesta hora

apenas desespero e esta falta de dedos

o temor da falta de respiração

já na próxima hora, ou no mais tardar

amanhã cedo, e isso se não ocorrer

de súbito, num derrame durante o sono

 

Não poderia restar logo agora

quando o horizonte parece tão concreto

o naufrágio dos sonhos não num mar

num vácuo, onde não há água nem ilha

onde há música, poemas e dedos de prosa

apenas em fagulhas de ruído branco

 

Não poderia restar esta falta de mão

a segurar com alguma segurança

o bom senso de ouvir estrelas

a chave de levar a todas as saídas

o alvoroço de passaradas nas praças

o tocar num serrote uma sonata

 

 

[De Observações. Ateliê Tipográfico/UFG, 2017]

 

 

PRELÚDIO

[fragmento de soneto]

quase

 

 

Seria de dizer: senão, quiçá, ou

Em certa hora a grelar o meio dia

tomar o elevador, a escadaria

a gralhar como fosse grua, grou

 

Subir de torna-volta em afasia

a tralalar Cee Lo Green em Fuck you

 

 

 

 

 

 

CENAS DE AMOR

[soneto simétrico]

 

 

Gente se amando, impostos aumentando

Na pressa, desistência ou quejando

 

À audição das estrelas, lua baça

a duvidar dos beijos empenhados

a custo da neurose que não passa

 

Um rapaz flagra a calça preferida

rasgada e sente falta da aliança

No guarda-roupa a noite se estanca

e uma lágrima tece uma ferida

 

Uma moça distante se amordaça

entre restos de livros naufragados

e se embarriga como fosse uma traça

 

Numa mesa o amor é quase quando

e perde enquanto lucra se estafando

 

 

 

 

 

 

O SINISTRO

[sonetilho canhoto]

 

 

Escolheu o lado esquerdo

onde a rua é mais atra

Mas em nada era cerdo

 

Houve quando era alcoólatra

contra si fez deserdo

rojando-se à culatra

 

Nem chorume nem laia

lhe dizia respeito

nem viver na gandaia

Sua vida era obtusa

 

mas não tinha despeito

nem moral que se escusa

Era estranho, era infausto

e vivia no claustro

 

 

 

 

 

 

 

[De Sonetos. Inéditos em livro, 2013-2017]

 

 

(das crônicas)

 

 

MORAL DA INVENÇÃO DO MEDO

 

 

Passávamos as manhãs na escola

Dormíamos cedo — desde 8 de agosto de 1975

até a mesma data de 1980, tínhamos então

5, 7 e 9 anos, às 22h a TV avisava

"Gabriela" — Proibido pra menores até 16 anos

Às vezes, a TV dizia pra dormirmos mais cedo

às 21h ou às 20h30, a mãe e o pai obedeciam

mas podíamos ir pra rua brincar, porém

não podíamos contar estrelas, dava verruga —

foi em 1497, quando à força, em Portugal

a gente judia foi convertida católica

e antes, se uma criança judia apontasse

pra Vésper, ganhava o respeito dos mais velhos

mas logo passou a denunciar a condição judaica

e os judeus mais velhos inventaram que as estrelas

a exemplo de Vésper, fazia nascer verruga nos dedos 

Passávamos as tardes cumprindo tarefas

deveres de casa e da escola em casa

e ninguém de nós se atrevia a não fazer, cumpria

consentia com a cabeça, que logo se abaixava

o olhar não renhia, era de peixe-morto

a memória tinha a forma de pássaro empalhado

tinha penas brilhantes nas asas que não alavam

nos olhos, uma cor sofrida de vertigem

Crescemos no costume do medo e da obediência

usávamos cabresto pra focar bem a vista

nem na cabeça contávamos estrelas

arriscava crescerem verrugas no cérebro

era quando se olhava muito pra cima

esticando o ouvido até perder o senso

aí o boletim vinha todo borrado de notas vermelhas

e de vermelho bastava o extrato no final do mês

o vermelho era sempre perigoso, dava medo

crescemos imaginando que um corte era hemorragia

Porém, podíamos, à noite, ir pra rua

brincar de cabra-cega e esconde-esconde

pra adivinhar o futuro à distância das mãos

e como o pegue, viver à procura de quem se escondeu

até que a mãe chamava, às 20h30, às 21h ou às 22h

era a hora que o papa-figo, um homem de rapina

com hepatite crônica, orelhas e dentes de vampiro, ia às ruas

parecia sofrer do Mal de Hansen ou do Mal de Chagas

e naquela época havia muito Trypanosoma cruzi

vivemos parte em Pernambuco e parte na Paraíba

e os sapos-cururus não comiam barbeiros

Obedecíamos, e o futuro permanecia na lonjura

e permanece ainda, ainda obedecemos

é preciso obedecer ao estado pra que mantenha a polícia

e pra que possa economizar na iluminação pública

então prolongamos as tardes, a cumprir tarefas

senão o tráfico, não o de influência, nos pega

ou o motoqueiro, até a reeleição do governador

ou o tiro à queima-roupa, ou a marcha subversiva

o aliciamento de menores, a formação de quadrilha

o terrorismo nacional — e vai ter tiro de borracha

cassetete e bomba de gás lacrimogênio, sobretudo

de efeito moral, que é preciso moralizar a gente

Assim a TV nos permitiu não sair de casa, sem censura

 

 

 

 

 

 

(dos reflexos)

 

 

Osso

o mais invisível do corpo

visível em estética

visível em miséria

Osso

resto que permanece

mais tempo depois do enterro

sob a madeira no solo

Osso

cada parte que aos poucos

depois da velhice e já na morte

se esquece que teve corpo

 

 

[De Postagens. Inéditas em livro, Éditas no Facebook, 2015-2018]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Jamesson Buarque tem vinte e nove anos de atividade poética, dos quais vinte anos são de publicação em livro impresso: os delírios (1998), Novíssimo testamento (2004), outra troia (2010), Pluviário Perpétuo (2011), Meditações (2015) e Observações (2017). outra troia, publicado pela artepaubrasil, foi vencedor da Bolsa de Criação Literária da FUNARTE/MINC de 2009. Em Goiás, recebeu a premiação da Coleção Vertentes, da UFG, em 2002, que gerou a publicação de Novíssimo testamento; o convite a participar da Coleção Verso e Prosa da Secretaria de Cultura do Município de Goiânia em 2010, que gerou Pluviário Perpétuo; o I Prêmio de Poesia Lacordaire Vieira da UBE-Seção Goiás com o poema "Revelação", publicado no livro Meditações; e o Prêmio Goyazes Leodegária de Jesus pelo conjunto da obra em 2014, e o convite para publicar Observações pelo Ateliê Tipográfico da UFG. Publicou em jornais e revistas, e faz ênfase a uma suíte em cinco movimentos ao poema publicada na revista Ermira, e ao poema "Gwinevere", publicado em 2017 pela revista Libertinagem. É professor de Teoria e Crítica da Literatura da Faculdade de Letras da UFG, onde desenvolve ensino, orientação e pesquisa em estudos de autoria, ensino de poesia na Educação Básica e estudos de poesia goiana.