©david szauder
 
 
 
 
 
 
 
 
 

O pior da paranoia é que ela sempre contém uma base lógica. Osvaldinho Telegrafista tinha uma enorme mania de perseguição, que se situava, porém, dentro de uma irrepreensível coerência. Foi por isso que, no dia em que me viu correndo, vindo do aeroporto em direção à cidade, não teve a menor dúvida de que algo de estranho acontecia. Para ele, a cena, sem dúvida, merecia que se pusesse em alerta. Tudo se encaixava. Ele, Osvaldo, era frequentador do bar Samburá, ponto de encontro dos intelectuais de esquerda de Bom Jesus da Lapa. Ali, tinha aprendido que a revolução socialista não tardaria ao Brasil. No bar, ninguém duvidava de que Cuba, de Fidel, já estava salva; que o Chile, de Allende, estava no caminho e que o Brasil, de Jango e Brizola, aproximava-se a passos largos do paraíso.

Osvaldinho, impregnado dos novos ensinamentos, passou a defender a igualdade absoluta entre pobres e ricos, fazendo disso um evangelho. Ficaram famosas suas pregações nas lojas de Tota e de Benjamim, contra o lucro que os comerciantes obtinham vendendo musselina e chita para o exército de romeiros do Bom Jesus. "A palavra lucro tem origem no latim lucrum, que quer dizer logro", repetia incansavelmente embora ninguém lhe desse ouvidos. O socialismo, alertava, estava chegando para corrigir isso.

Devido aos sermões cotidianos e sempre repudiados, nosso paranoico telegrafista acabou convicto de que, não só os comerciantes a quem tentava convencer de suas teses, mas também toda a sociedade lapense conspirava contra ele e pretendia eliminá-lo da face da terra. Dessa forma, quando a situação política sofreu a histórica reviravolta que derrubou Jango e exilou Brizola, teve a mais absoluta certeza de que algo de ruim estava sendo projetado contra ele.

Da mesma forma como toda paranoia tem base lógica, todo boato tem um fundo de verdade. E os boatos da época espalhavam a notícia de que o exército golpista, depois de debelar as oposições nas capitais, dirigia-se incontinenti aos lugares mais retirados da nação, a fim de dizimar todo e qualquer reduto socialista e subversivo. No caso dos intelectuais do Samburá, seria mesmo aconselhável que pusessem suas barbas fidelcastrinas de molho. Porém, muito dificilmente alguém poderia levar a sério as ideias de um psicopata pacífico como Osvaldinho — ainda que as ações dos psicopatas oficiais dessem provas, mais tarde, de que ninguém estava livre de perseguição no caça-às-bruxas estabelecido no Brasil pós-Redentora.

Mas, aproveitando-se do fato de que nosso paranoico personagem estava na defensiva, e com muito medo, os eternos gozadores de plantão começaram a incutir em sua cabeça que ele realmente corria perigo, que o exército havia grampeado diversas de suas transmissões telegráficas, feitas da sede local da Comissão do Vale do São Francisco, onde trabalhava há anos, para aliados subversivos do Rio, Salvador e São Paulo, e que, sendo assim, não tardariam a vir prendê-lo. Os gozadores, quanto mais observavam que a aflição do telegrafista aumentava, mais aumentavam também os boatos ameaçadores.

Nesse clima, não estranhei quando, no meio de minha habitual corrida entre o aeroporto e minha casa, entre o último voo da manhã e o primeiro da tarde, apenas para poder assistir meu irmão mais velho, que também era telegrafista, conversando com as tripulações das aeronaves, ajudando-as a pousar em paz, Osvaldinho emparelhou-se comigo e passou a me acompanhar na corrida, perguntando o que havia acontecido no aeroporto que me obrigava a fugir daquela forma.

Imediatamente, num reflexo bem brasileiro, emendei uma explicação apavorante. Disse-lhe que dois aviões militares, imensos e repletos de soldados, haviam acabado de aterrissar e estavam descarregando armamentos e carros de combate que seriam utilizados numa invasão total à cidade. A reação de Osvaldinho, porém, foi além do que esperava. Ele emendou uma terceira, uma quarta e uma quinta nos sapatos, deixando-me bem para trás, e sumiu em direção à estrada que levava para fora do município.

Dias depois, soube que havia desaparecido por completo e que sua família, apavorada, estava à sua procura. Imediatamente fui até a casa onde vivia com os parentes e contei o que acontecera, com pedidos mil de desculpas. Desaprovaram totalmente o que eu havia feito, mas pelo menos tiveram alguma pista esclarecedora do mistério. Dias depois, seguindo outras dicas, acabaram por encontrá-lo escondido na fazenda de um tio, faminto e um pouco mais louco.

Nunca mais brinquei assim. Ainda mais que a brincadeira foi de mau agouro, pois, poucos meses mais tarde, aterrissou na cidade um comando militar com a missão de investigar um possível foco de terroristas baseado nos arredores. Muita gente passou por maus momentos quando os boatos se transformaram na mais pura e implacável realidade. Aí foi a nossa vez de correr apavorados à procura de um bom esconderijo. O fato, assim, demonstrou que, além de todo boato ter deveras um fundo de verdade, a paranoia, por mais paradoxal que pareça, é de fato estruturada dentro da lógica. Mesmo que os psicopatas em questão tenham QI de intelectual, farda de general, ou apenas um emprego público numa repartição tranquila e cuja maior ambição seja, apenas, a de ver comerciantes vendendo mais barato a roupa de domingo na festa do Bom Jesus.

 

 

 

setembro, 2018