LAVADOR DE PRATOS

 

 

Sussurram,

na superfície da louça,

os duendes da faiança

e o piano de Satie.

Enxáguo

desejos inconfessos

e, entre talheres,

me despeço

da Gymnopédie.

Há sempre um ar de água

nas frases que me dizem

quando a manhã acaba.

E no brilho dos pratos,

a mesma cor

da mágoa.

 

 

 

 

 

 

FRACTAIS

 

 

Pelo mergulho

das sombras,

calculo

o itinerário da luz.

Meço

os contornos de nossas ruínas

na matemática particular

dos desesperos.

Abro a janela

da página do sonho:

soletro, devagar, o Aywu rapitá:

o ser do ser da palavra,

(flor pronunciada

entre as estrelas).

A noite

desaba sobre as telhas

na explosão de um meteoro.

Conto estilhaços,

recomponho parábolas:

um mínimo do que sou

lembra as fronteiras

do Universo.

 

 

 

 

 

 

AS RÉSTIAS DO MUXARABIÊ

 

 

                   A Esman Dias

 

 

Diante de mim

há sempre o outro

a perguntar-me:

O que será de ti?

O que será de mim

no sossego dessas praças mortas,

na angústia dos estacionamentos,

no frio das salas de espera,

quando o outro,

o sempre múltiplo,

pergunta:

O que será de ti?

O que será de mim

quando os besouros esquecerem

as lâmpadas dos postes

ou o vento passar sem varrer nossas cinzas?

Às vezes o procuro nas noites sem livros,

quando a contabilidade das estrelas

fecha seu Razão.

Alguma coisa me arrepia a espinha

como dentes de um roedor

acariciando o lugar de nossas nucas

onde rebentam as primeiras sementes da chuva...

Ou quando o surpreendo a ler

um cordel de rimas cruzadas

ou o Justine, do Marquês de Sade.

A cadeira range.

Ele vira-se, e pergunta:

O que será de ti?

O que será de mim,

nessa cidade fétida e fria,

cujos rios apodrecem as raízes

de uma planície de horizontes curvos?

O que será de nós

nesse pôr do sol imperfeito

que nos oprime com seus cárceres de sombras?

Deitado na rede,

ele se abaixa e acaricia o cão

deitado a seus pés.

Ao volver a cabeça,

olha-me de viés,

e, de novo, pergunta:

O que será de ti?

Sentado neste banco

doem-me as réstias que atravessam o muxarabiê

Porque tudo dói

na solidão desta Casa,

onde sequestro meu corpo

e me abismo de Tuas alturas.

 

 

 

 

 

 

AS NEBLINAS

 

 

1

 

Encandeia-nos

a luz desses faróis

no limiar secreto

de nossa Escuridão.

Nos pórticos da agonia

palpitam os hieróglifos

do Seu nome:

ouço urros

quando a noite arrebenta

suas altas comportas.

Então, regresso comigo

aos meus relâmpagos,

minha neblina, nossos segredos.

 

 

 

2

 

Pedi

que me abrissem a porta,

recolhessem as chaves,

escolhessem um dia no calendário

em que, sozinho,

pudesse apagar

o lume dessa chaga.

 

 

 

3

 

Dias antes

houve um mormaço na alma:

as rãs se esconderam nas gavetas,

e tua cintura se desvelou,

como um pássaro

surpreendido entre os jacintos.

 

 

 

4

 

De manhã,

senti tua mão roçar-me o peito:

apenas a lembrar

as ruínas desse dia

a fugir

entre os espelhos.

 

 

 

5

 

Olho,

mais uma vez,

pelas frestas das telhas:

estrelas se alinhavam

em teus cabelos

e uma luz se dissipa

no teu dorso.

Das copas dos arvoredos

jorra um abril

de desesperos.

Devagar, a manhã

se despede nos subterrâneos

de teus olhos.

 

 

 

 

 

 

DECLARAÇÃO

 

 

Sou

apenas

uma pequena nuvem,

ela me disse:

uma nuvem

que se encaminha

para o sul,

sempre o sul.

Ou, se quiseres,

uma brisa,

ela me disse;

uma brisa aquecida

no desvelo dessa pele.

Ou apenas

uma sombra,

ela me disse:

uma minúscula

sombra de ti mesmo,

desfazendo-se

em negro e cinza,

morrendo

como a palavra esquecimento.

Sou apenas

um resto de ti,

ela me disse,

uma gota

partida de teu sangue,

o trovejar de teu murmúrio.

Sou apenas

a vertente do segredo,

ela me disse:

os móveis da casa,

a ladeira,

a rua,

um rio

que se deita na paisagem.

 

Sou apenas

uma pequena nuvem,

ela me disse:

um som,

um soluço,

uma nave

desorientada no teu céu.

 

 

[Poemas do livro A Rua do Padre Inglês. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006]

 

 

 

 

 

 

*

 

 

O canário

debulhava trinados.

Na rede

fluíam fábulas.

Sobre muros e telhados

os urubus empinavam

lições de trevas.

No alto,

apenas uma nuvem

me escutava...

 

 

 

 

 

 

FLAMBOYANT

 

 

arrebento

o coração do verde

nesta tarde

é quando o sol flora

jaboticabas no pé

madura cor do olho

divina

é uma cor indefinida

hálito que não se descreve

sou apenas

o encarnado

 

arrebento

o coração do verde

e sangro

ao ritmo regular

e persistente

da chuva

então

discurso ao que passa

sobre esta mancha

que encarde

a avareza dos dias

 

sou

apenas a ferida

no alto de uma tarde

uma coroa de espinhos

no silêncio

 

 

 

 

 

 

CAFÉ

 

 

Desencarno arábias

de uma xícara morna

de café.

E um fio negro

me assedia a boca.

 

(Através da janela

o galho de pitanga

ostenta seu adorno

encarnado).

 

Viajo

pelo negror do pó:

Dar-El-Salam,

Bombaim,

Áden

(sem Nizan, sem Rimbaud):

as colinas ocres,

a poeira dos dias.

 

De onde vem o grão

dessa saudade?

 

Desentranho arábias

dessa xícara fria.

Enquanto aguardo o dia

que não chega.

 

 

 

 

 

 

ORLEY

 

 

Ele cruzava

as pontes do Recife

em direção à Abissínia.

 

Nós o seguíamos:

havia sempre um cais,

um segredo,

o elixir das noites mortas.

Aprendíamos

a verdade incompleta,

o sortilégio dos desenganos,

as formas de penetrar,

(de leste a oeste)

a pálpebra das coisas.

 

Sempre um átomo a pulsar

no vidro,

no sexo,

nos móveis da casa:

a substância mais viva

do esquecimento.

 

Digo:

o silêncio é uma rua

de janelas fechadas.

 

 

[Poemas do livro Retábulo de Jerônimo Bosch. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008]

 

 

 

 

 

 

O TRAPEZISTA, PINTOR

 

 

sob

a sombra do trapézio

a saliva do medo

tece

aracnídea molécula

aparador e volante

erguem seu

precipício

no orifício da esfera

seus quatro braços

burlam luzes despejadas

sobre o chão

após os aplausos

pintar

altas antenas

caixas d'água

e a tosse

a tosse...

 

 

 

 

 

 

OUTUBRO, 2008

 

 

Leio jornais

e sinto o roçar da barba de Marx

em nossa pele.

Não o Marx de papel cromo:

o dos furúnculos que se multiplicam

como crianças trituradas

nos teares de Manchester.

Leio os jornais

e faz calor nos trópicos,

mais do que de costume,

nesses cem anos de Lévy-Strauss.

Ei-lo

a decompor as equações da mais-valia,

enquanto fios de barba enroscam-se

nos chips que medem a pulsação do sexo

nos corredores de Wall Street.

Seja bem-vindo, velho Marx!

Mesmo com a mancha de café na gola da camisa,

contas a pagar no bolso esquerdo do casaco,

cabeça a mil nos esquemas da reprodução ampliada.

Leio os jornais

e sinto tua barba a incomodar de novo

jovens estagiários de terno e gravata,

especuladores que acompanham as cotações da Bolsa,

empresários que apostam nas próximas estações...

Aqui estarás a salvo em alguma favela,

conversarás com personagens de subúrbio,

olharás ao longe o Cristo que abre os braços,

como quem diz:

Fiz o que pude!

Depois, voltarás para casa,

reformulando velhas ideias sobre

o lumpenproletariat,

mesmo sem saber se irás torcer

pelo Vasco ou pelo Flamengo...

 

 

 

 

 

 

ESCOVA DE DENTES

 

 

humilde

a escova de dentes aguarda

sobre a pia

sua cor não tem

brilho de fruta

seu toque áspero

lembra o difícil

ofício de viver

ao vê-la

ao lado

do copo d'água

descubro

a cada manhã

o dia a rebentar-se

na fúria

de todas as suas máquinas...

 

 

 

 

 

 

O ANÚNCIO DOS BÁRBAROS

 

 

Hamid, o cego,

disse:

o olho

é apenas circunstância do real:

a lógica não necessita cores.

Disse

e apertou meu braço

com a obsessão dos sonâmbulos.

Abriu a caixa do relógio

com a ponta dos dedos.

Acariciou as horas.

E se foi.

Hamid, o cego,

tinha pressa:

a horda dos bárbaros

estava por chegar:

pelas escadarias das universidades

ou pelos fundos das

pequenas lojas

onde a dialética da escuridão

fabrica seus fantoches.

 

 

 

[Poemas do livro Poeiras na réstia. Rio de Janeiro: 7Letras, 2010]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Everardo Norões. Escritor, poeta, tradutor. Entre outros livros, publicou A rua do Padre Inglês (Rio de Janeiro: 7Letras, 2006),  Retábulo de Jerônimo Bosch (Rio de Janeiro: 7Letras, 2008) e Poeiras na réstia (Rio de Janeiro: 7Letras, 2010). Seu livro Entre moscas (Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2013), recebeu o prêmio Portugal Telecom 2014 na Categoria Contos/Crônicas. Organizou a obra completa do poeta Joaquim Cardozo, editada pela Nova Aguilar, antologias da poesia peruana e do poeta mexicano Carlos Pellicer. Vive atualmente em Portugal. Traduzido em francês, inglês, espanhol, catalão e quíchua.