©david seidman
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Saudade daquele tempo em que todo o mundo era imortal. A partir da idade dos meus pais, via as pessoas de quarenta anos como velhas. Aliás, não sabia calcular a idade de ninguém, pois esse tipo de operação não fazia parte das minhas inquietações. Nem sequer imaginava a previsibilidade dos finais. A expressão "tudo tem fim" entrava por um ouvido e saía pelo outro. O baile durava para sempre, a orquestra não ia parar de tocar, o namoro não acabaria nunca e ninguém morria. Ou — se chegava a morrer — era gente de longe, a cuja morte eu apenas assistia, mas minha família e meus amigos estavam protegidos, na minha imaginação, como se vivessem numa cápsula imune à passagem do tempo. O mundo era um lugar seguro, pelo menos o mundinho pequeno da cidadezinha do interior, em que todos se conheciam e até os cães abandonados podiam ser identificados por suas características. Havia o vira-lata manchado de preto, o das patas brancas, o marrom, e assim sucessivamente. Andavam pela cidade toda, à vontade.

Agora, anos depois, a morte. As mortes. São muitas, mas me refiro às físicas mesmo, às mortes literais, redondas, espessas, definitivas, pesadas como concreto, sem perdão e sem negociação. A morte é pegajosa, gruda-se à pele da gente e depois não quer sair mais de lá, nem ensaboando, passando alvejante.

Ando assim, vestida de morte. Ou de mortes. A mais leve percepção da iminência da morte de um ser querido serve de gancho para puxar todas as outras, as que já vivemos e que quase nos despedaçaram. Tenho a sensação de que nunca conseguirei vestir outro traje que não seja esse, roxo, cor da roupa com que vestiam a imagem de Nossa Senhora na Procissão do Encontro, que se realizava na quarta-feira santa, quando os homens saíam do asilo com a imagem do Crucificado e as mulheres desciam as escadarias da igreja carregando o andor com a imagem da Virgem Maria. Os dois cortejos se encontravam em um ponto da praça e ali ouvíamos, contritos, alguns chorando, o sermão feito pelo pároco da cidade. Mãe e filho frente a frente, a mãe chorando o seu morto, enquanto todos nós revivíamos a longínqua cena sempre presente no inconsciente coletivo.

O que dizer sobre a morte, que não seja óbvio? Como comunicar ao outro — ao que não vestiu ainda o traje de chumbo inconsútil — o que se sente? O que falar depois de tudo que já foi dito e escrito sobre esse fenômeno tão natural quanto estranho? Como acrescentar algo valoroso depois de tantas obras literárias, ensaios filosóficos, livros técnicos?  Eu mesma já me aventurei nessa senda, no meu último romance, O indizível sentido do amor. Não é novidade para mim escarafunchar essa terra de todos e de ninguém.

A questão é que o tema, por sua complexidade, por conter tantas camadas superpostas umas às outras, pelo mistério que lhe é inerente, parece fugir das nossas mãos. A gente puxa uma ponta e daí a pouco ela nos escapa, e surge nova ponta, e outra mais, como se sua matéria-prima fosse uma malha molenga, que não admite nenhum tipo de apreensão ou captura.

Uma intensa exaustão me invade. Dizer o quê? Repetir como é triste deixar o cemitério, depois que devolvemos à terra as pessoas que mais amamos? Contar pela milésima vez como o sobrevivente se sente só, despreparado, despojado, desencantado, desarmado, descarnado, desamparado, nu? Que não sentimos mais a firmeza necessária para continuar a caminhada? Que a partir daquele momento exato viveremos uma batalha diária para sair da cama e fazer qualquer atividade? Que a gente acha que nem dá conta de pequenas tarefas miúdas, como catar botões, guardar agulhas, grampos e alfinetes em caixinhas?

O difícil no processo do luto é que ele parece não acabar nunca. É claro que se trata de uma impressão, mas mesmo terminado, a gente não volta a ser quem era. Não é possível ficar incólume depois de ter feito um passeio ao inferno, por mais breve e fugaz que tenha sido a nossa visão das labaredas intermináveis. Não funciona assim, pelo menos para quem não teme o encontro com a dor. Ou talvez não seja uma questão de temer ou não temer e sim de enfrentá-la por não ter alternativa. Escolha não há, aqui. Existe apenas a certeza de que a morte exige um ritual, há que lhe prestar vassalagem, ela quer nos incomodar, fica à nossa frente o tempo todo, aparece no momento em que almoçamos, ao mastigarmos o quiabo, ao partirmos o bife, ao sentirmos o gosto do jiló frito, ressurge na hora do banho, quando tudo parece inocente e simples, ensaboadas a perna direita e a esquerda, a lembrança pode renascer quando chegamos ao dedão de um dos pés.

A história da morte, as histórias sobre as mortes jamais acabarão. Tão parecidas e ao mesmo tempo diferentes, cada uma delas nos levará invariavelmente a um novo território, a outra vereda, a um recém-descoberto caminho. E só existe uma maneira de fazer a trilha: sem nenhum tipo de companhia.

 

 

 

setembro, 2018