A matéria-prima da literatura é a palavra, e é por meio dela que a ficção se materializa em realidade. Além de conectar situações em tempos e espaços diversos, ela tem o poder de conectar pessoas na vida real. Foi a literatura que forjou a minha amizade com o poeta, novelista, tradutor, professor da USP e crítico literário Carlos Felipe Moisés (1942-2017). Li seu livro de poemas Noite Nula e, impressionado com a força de seus versos, escrevi ao Carlos, no calor da hora (pouco tempo depois do furação Katrina ter arrasado a cidade de Nova Orleans), minhas impressões sobre o livro. Reproduzo no final da resenha sobre Noite Nula a resposta que o Carlos Felipe Moisés me enviou algumas horas depois de lê-la. Foi graças a essa resenha (e à reação que ela provocou no poeta) que pude me perceber como crítico literário. E, depois, como escritor (Carlos Felipe Moisés escreveu o prefácio de meu primeiro romance, Rua Direita). Depois, ou talvez antes de tudo, pude constatar que a literatura me transformara em amigo do CFM. Ainda sem ter conseguido até hoje preencher o vazio de sua perda, ofereço um brinde ao poeta. E, depois do brinde, que venham mais alguns tragos entre um poema e outro nesta eterna Noite Nula.

 

 

Li o Noite Nula, do poeta Carlos Felipe Moisés, como quem dá um trago em um copo de uísque, sentado em uma mesa de bar na Vila Madalena ou na Bourbon Street, em Nova Orleans. Li o livro tentando ouvir o som que sopra de suas páginas. E o som vem de todos os lugares: do saxofone que marca o final de todas as páginas ímpares (o número ímpar sugere o desequilíbrio, o "desbalanço", o incômodo), das fotos da capa e dos títulos dos poemas. Mas, lá no fundo, anterior a todos esses sons, vem uma batida constante, algo que chegou aos meus ouvidos como um eco do grito primal, um eco do Big Bang: "o vão segredo da origem do universo".  E, por evocar a origem comum a tudo e a todos, Noite Nula passa a refletir elementos que compartilhamos (muitas vezes em segredo).

 

É nesse momento que a leitura dos poemas nesta obra nos toca e passa a fazer parte do leitor, entrando em nossas veias como grito ("a voz vem do útero rasgada — uivo alucinado de quem só quer uma chance — e já na garganta se transforma em pranto rouco, canto de quem nasce e renasce e morre"), como choro (olha o som do saxofone de novo), como música. Nesse sentido, Carlos Felipe Moisés atingiu o que sempre almeja em seus livros, ele "conseguiu tocar nessa variedade de coisas de uma forma tal, que transmite ao leitor alguma comoção". E lembro aqui que a palavra comoção sugere o movimento acompanhado: os poemas em Noite Nula movem o leitor, que se vê, nesse movimento, acompanhado de suas perturbações e de seus incômodos.

 

O universo é recheado de estrelas, de brilho, mas a luz é uma exceção ali: o universo é quase todo escuridão. E é no escuro que caminhamos lendo o Noite Nula. As perguntas nos levam a incertezas e dúvidas. O livro levanta uma questão básica, que pode ser ilustrada no verso: "Como vão as coisas, Charlie?". Tal pergunta, aparentemente apenas fática, aparentemente uma "simples" referência a Charlie Parker e a Jorge Benjor, na verdade, convida agressivamente o leitor a tentar enxergar-se no breu sem lanterna: "Chega de tu! É você". E a resposta parece que nunca chega com a suavidade musical do jazz, pois o eco constante da própria vida dos vários personagens-poemas (o sopro do jazz nesta obra também se dá no título de vários dos poemas) remete ao delírio, ao desequilíbrio e à dúvida. Há em Noite Nula um desfile de substantivos, advérbios e adjetivos que martelam com baquetas de bateria uma dúvida existencial que nos move para a morte (ou renascimento?) incessante: penumbra, ninguém, nenhum, negação, choro, grito. E eu me busco na dúvida, na incerteza, no escuro. Encho-me de nadas que me sopram vazios. E sonhos. E leio que "Nada compensa o vazio da meta não sonhada".

 

Noite Nula é, para mim, um piscar de olhos: ao fechar as pálpebras, mergulho na certeza das trevas; ao abri-las, entro na luz da dúvida. Todo esse movimento para, no final, concluir que a noite é nula. Mas é no nada que eu cresço.

 

Existe um elemento constante em Noite Nula, que, por ser inalcançável, não pode ser tocado, e faz com que sempre pisemos em solo movediço: o tempo. O tempo está presente na noite, no escuro, no "ontem hoje sempre" do Kay Sage; no "amanhã é nunca". No nada original do Big Bang e até na clareza do dia no nome Billie Holiday (cujo dia não é qualquer dia, é um dia sagrado, portanto, idealizado e inatingível).

 

Quero dizer, para finalizar, que a experiência de ler Noite Nula foi, sim, perturbadora e me deixou, até agora, entusiasmado e espantado. Vale a pena atravessar o Katrina de suas páginas. Vai um uísque aí?

 

 

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Oi, Anderson!

 

Agora comovido fiquei eu... Sua reação foi muito generosa, muito afinada com as minhas intenções, você foi, com olhar e sensibilidade certeiros, aos pontos que (me) interessam. Esse Noite Nula traduz 10 anos de luta insana contra as palavras, a favor das palavras (e o mundo ilimitado que as palavras podem carregar), na expectativa de que os poemas pudessem transmitir alguma coisa ao leitor. Sua reação me garante que valeu a pena. Já tenho uma pequena coleção de comentários e resenhas, às quais se junta agora o seu comentário, que vou guardar com carinho. Você não pensaria em publicar? Sei lá, algum jornal, algum site...

 

Obrigado pelo carinho,

 

Carlos

 

 

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O livro: Carlos Felipe Moisés. Noite nula.

São Paulo: Nankin Editorial, 2008, 96 págs.

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setembro, 2018