1

esperar nada tem a ver com o tempo

que é sempre igual a ficar quieto

é como amarrar um cão ao poste e torcer

para que em algum momento ele desate a correr

 

 

2

com a porta finalmente aberta

e o sorriso escapulindo dela

e no paciente desfolhear das revistas apagadas

pulará na boca de seu vizinho, que susto!

 

 

3

almofada silenciosa, cadeira irrequieta

tapete amarfanhado, o nome dele,

o seu nome, o meu nome

é nossa vez

 

 

4

há um verniz em cada palavra

que é impossível descascar

sob sua pele inacessível

os gestos fazem reclamações

 

 

5

aquele outro hoje recebeu seu diagnóstico

e irá guardá-lo entre os brinquedos, em casa

sabe quantas coisas ele já diz?

nuvem girafa pipoca elefante etc

 

 

6

às vezes estamos fora de lugar

num tempo que não é nosso

ou buscando alguém que não nos espera

os milagres não costumam nascer assim

 

 

7

já não espero conhecer o interior das sementes

e o que o futuro reserva e tudo o que há para plantar

esta é uma lavoura do acaso

tudo depende de muitas mãos

 

 

8

aqui os móveis não riem com a mesma intensidade

com que o sol brilha lá fora, mas se fugirmos correndo

conseguimos uma nesga ou bebemos um pouco da chuva

nós também estamos na natureza

 

 

9

os antigos navegantes nunca tinham o que encontrar

me escute bem

as grandes surpresas não são como os temporais

da previsão do tempo

 

 

10

um dia chegamos empapados em casa, mas não havia chovido. Ele havia me olhado tão dentro que se molhou de mim, sem esperar que eu fizesse o mesmo. Quando estamos a sós é assim: boiamos um dentro do outro.

 

 

11

o telefone toca ringa atende

as mesmas palavras saem do envelope

fogem através do corredor, guardando folhas nos pés

horário marcado

 

 

12

resolvemos levar livros

já que nossas histórias acabaram

somos personagens da esperança

os lavradores sob o sol do desenho

 

 

13

esta é uma floresta dos trópicos, talvez

o mundo dentro de um livro, onde tudo

acontece na mitologia

que uma boca conta para a outra

 

 

14

uma vez longe daqui um homem criou

a geringonça mais estúpida de todas

e quando ele foi batizá-la

não havia um nome que a acordasse

 

 

15

lá vamos nós por onde os cães nos espreitam

fingimos de latir tão grande

que eles se escondem

nós somos os leões da savana

 

 

16

viver é uma das tantas coisas sem conserto

que resta fazer, por isso

criamos linguagens secretas

que apenas nós entendemos

 

 

17

há muitas coisas para esquecer

dentre os destinos do dia

só para o mais desimportante

a secretária liga e confirma

 

 

18

no elevador fazemos silêncio mesmo quando não há ninguém

é um respeito às ausências dos que já foram

e uma forma de não ocupar o espaço

dos que ainda estão para chegar

 

 

19

a rua é uma canção dos seus passos

onde que quer que ela viva

e a alegria refresca-se

na boca de um gato que lambe o bigode

 

 

20

medo sem perigo é melhor

fome sem comida é a dor

casa sem criança é maior

beijo sem saudade é amor

 

 

 

[imagens ©jacqueline velazques]

 

 

 


 

 

 

 

Lucio Carvalho (Bagé/RS, 1971). Autor de A aposta (Ed. Movimento), Inclusão em pauta (Ed. do Autor) e do blogue Em meia palavra. Tem atuado como editor e articulista em revistas culturais, portais, agências de notícias e veículos de imprensa. Escreve ficção, poesia e crítica literária.

 

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