©camila carlow
 
 
 

 
 
 
 

CICLO

 

 

flores do ocaso

em passeios matinais

 

noite chega

 

sonhos a galope

germinam versos

fagulham luas

sobre encantados

mundos

 

a gente vagueia

 

saltimbancos

por vastas filosofias

até esbarrar em pedra e dia

 

mundos implodem

flores desidratam

versos desbotam

a gente acorda

 

e mais um sol faz dormir a lua

 

 

 

 

 

 

DILACERADO

 

 

poema

campo minado

cada verso

uma explosão

 

armadilha

 

para o leitor:

kamikaze.

 

 

 

 

 

 

BABEL(ICOS)

 

 

Naquele dia

Todas as línguas

se elevaram em coro

(quéchua, maori, tupi, mandarim

aramaico, latim)

 

Naquele dia

em todas as falas

uma só prece:

 

Não mais!

Não mais!

Não mais!

 

Naquele dia

todos os mantras

sussurraram

um só desejo:

 

Asim seja.

Asim seja.

Asim seja.

 

 

 

 

 

 

CITY(ADOS)

 

 

cidades e humanos

pulsam em vida e dor

sangram mistérios

em ruas e artérias:

fecundam-se

 

incestuosamente

geram minotauros

meio humanos

meio cidades:

por inteiro sitiados.

 

 

 


 

 

 

*

 

 

o coiote de Chagall

come caramelo

mas fareja

humanos

 

se não há saídas

por highways

 

fugir

por desfiladeiros

iluminados

com anéis de vagalumes.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

percebeu-se raiz

quando olhou pra trás

e viu o quanto

se deslocara

na profundidade

das coisas

 

enraizar-se

é ocupar

espaços

 

 

 

 

 

 

*

 

 

quis ser barco à vela

desgarrar-se do porto

no leme de gaivotas

 

ousar pensar

no mar só dela

 

e foi...

 

na falta de lua

desenhou estrelas

numa pipa psicodélica

fez dela aurora boreal

 

céu e oceano fagulham

contos e assombrações

em folhas de papel

 

navegar

é poesia.

 

 

 

 

 

 

SAUDADE

 

 

o sentimento de ausência,

aromatiza-se

em gosto de framboesa.

 

aspiram-se reminicências

 

entre tantos tons e tatos

agudos e macios,

graves instantes.

 

na agridoce visão

de cinco sentidos

 

degustam-se urgências

 

 

 

 

 

 

DIVÃ

 

 

metaforizei todos os medos

em insetos kafkianos

mas não os comi, Clarice.

 

organizei-os numa fila

uma seleção não natural

[Darwin que me perdoe]

só os antipáticos

 

da barata ao odioso do egito

colorida filogenia

todos emparedados

a pedir clemência.

 

eliminá-los agora

é só uma questão

de qual melhor inseticida

não mais de consciência.

 

 

 

 

 

 

MULHER

 

 

de que vale a suavidade

se te fragiliza corpo e alma

na exata medida de teu peso

 

uma voz diz: embruteça

 

de que serve a sedução

se te põe em risco

ao dispor teu corpo

em objeto de desejo

 

outra voz ordena: resista

 

de que vale o talento

se, na proporção de seu valor,

tem sido silenciado

 

outro conselho: reaja

 

de que serve uma liberdade

ilusoriamente conquistada

que te aprisiona em um novo habitus

 

outra sentença: supere

 

o algoz é ele

o algoz é ela

algonizamos.

 

 

 

 

 

FEITIÇO

 

 

duvidaram

de sua magia

 

pecaram.

 

foi quando

de uma brisa

tirou um fio de vento

e costurou uma tormenta

 

inclemente, que só ela

não teve reza nem apelo

que estancasse

a sangria.

 

 

 

 

 

 

ESCREVO

 

 

só porque sou lua

 

e em fase cheia

transbordo pirilampos adormecidos

em palavras despertas em suor,

fluidos e sentimentos

 

e no que transbordo

desoculto a face dos silêncios loquazes:

desafogo-me

 

e no que deságuo

contrario máximas:

escrevo pra ninguém

 

confronto-me com a palavra

fruto urgente do enunciado

ainda que por mim gerada

desconheço-lhe a maternidade

 

me vejo cria da palavra.

 

 

 


 

 

 

 

Regina Celi Mendes Pereira nasceu em João Pessoa, em 1963. É professora da Universidade Federal da Paraíba, pesquisadora do CNPq, editora da Revista Prolíngua e coordenadora da sub-sede da Cátedra UNESCO em Leitura e Escritura. Suas publicações em livros e revistas são todas acadêmicas, em Linguística Aplicada. Leitora e apreciadora de poemas, de vez em quando, arrisca-se a escrever alguns.