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É negativamente impressionante a quantidade de preconceitos e de julgamentos maledicentes que ao longo do tempo as religiões, filósofos, autoridades universais e formadores de opinião em geral têm contra as mulheres. Há na História um verdadeiro bullyng contra as mulheres em textos que deveriam, ao contrário, sublimar a condição feminina como ser humano que integra par e passo a natureza dos seres mais importantes criados por Deus. Todo mundo horroriza com certas opiniões que não procedem, por aviltar o que não são as mulheres, desde épocas remotas, quando o homem-pensador passou a julgá-las num juízo de valor errôneo e escancaradamente prejudicial à sua imagem e semelhança. É simplesmente assustador que mesmo religiões, apóstolos, filósofos e gente do primeiro time das referências mundiais tenham externado tanto maldizer e opiniões doentias contra o gênero mulher. E essas opiniões machistas estão publicadas justo em livros de exemplos, como bíblias, livros sagrados, compêndios filosóficos, tudo produzido para criticar as mulheres e delas infantilmente tirar a cota de responsabilidade pela evolução humana. Você, leitor(a), vai estranhar muito o extremismo, por exemplo, de São Paulo apóstolo em declaração absurda: "Que as mulheres estejam caladas nas igrejas, porque não lhes é permitido falar. Se quiserem ser instruídas sobre algum ponto, interroguem em casa os seus maridos". Aristóteles, preceptor grego de Alexandre, o Grande, no século IV a.C. escreveu: "A natureza só faz mulheres quando não pode fazer homens. A mulher é, portanto, um homem inferior". Lutero, teólogo alemão, reformador protestante, no século XVI: "O pior adorno que uma mulher pode querer usar é ser sábia". A Constituição Nacional inglesa institui a seguinte lei do século XVIII: "Todas as mulheres que seduzirem e levarem ao casamento os súditos de Sua Majestade mediante o uso de perfumes, dentes postiços, perucas e recheio nos quadris, incorrem em delito de bruxaria e o casamento fica automaticamente anulado". É pura brutalidade e ignorância extrema o que apregoa o Tratado de Conduta Moral e Costumes da França, no século XIV: "Quando um homem for repreendido em público por uma mulher, cabe-lhe o direito de derrubá-la com um soco, desferir-lhe um pontapé e quebrar-lhe o nariz para que assim, desfigurada, não se deixe ver, envergonhada de sua face". Outorgada pelo rei, que segundo consta a concebeu sob inspiração divina, no século XVII a.C., a Constituição Nacional da Babilônia, também conhecida como Código de Hamurabi, preconiza que "quando uma mulher tiver conduta desordenada e deixar de cumprir suas obrigações do lar, o marido pode submetê-la à escravidão e esta servidão pode, inclusive, ser exercida na casa de um credor de seu marido e, durante o período em que durar, é lícito a ele (ao marido) contrair novo matrimônio". Henrique XVI, rei da Inglaterra e chefe da igreja anglicana já no século XVI fazia por inferiorizar intelectualmente a mulher: "As crianças, os idiotas, os lunáticos e as mulheres não podem e não têm capacidade para efetuar negócios". O Alcorão, livro sagrado dos muçulmanos, recitado por Alá a Maomé no século VI, diz: "Os homens são superiores às mulheres porque Alá outorgou-lhes a primazia sobre elas. Portanto, dai aos varões o dobro do que dai às mulheres. Os maridos que sofrerem desobediência de suas mulheres podem castigá-las: deixá-las sós em seus leitos, e até bater nelas. Não se legou ao homem maior calamidade que a mulher".

Por esses e tantos outros escritos extremistas vê-se quão árduo foi o caminho para as mulheres chegarem aos dias de hoje em igualdade de condições com os homens. No Brasil atual, campeão mundial de violência doméstica, com um espancamento de mulher a cada 10 minutos, um estupro a cada 11 minutos, um assassinato de mulher a cada 2 horas, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, tem-se um presidente que não respeita as mulheres e faz declarações patriarcais de dominação arcaicas. Se o Brasil hodierno tem a lei Maria da Penha e uma Constituição equânime em direitos e deveres para cidadãs e cidadãos (apesar de haver ainda muita discrepância), infelizmente, em muitos países islâmicos as mulheres continuam na mesma situação desses escritos milenares. Quem ainda pensa como esses escritos não merece ter tido uma mãe.

 

 

 

 

 

 

Desde A casa do caracol e Pétala no asfalto, seus livros anteriores, e agora neste Todos os centros do mundo, Ana Paula Santos Rodrigues matura uma dicção própria, tendo já algumas marcas em sua linguagem que são comuns, como a reflexão, a existencialidade, o mundo em desencanto, o ser ante a indiferença, a natureza sob a ação predatória pelo homem, a descoberta de si mesma, o realismo pujante que caracteriza seu questionamento lírico, o jeito simples mas profundo de escrever da poeta.

No presente livro, Ana corrobora estes diferenciais. Agora com mais "força analogante das imagens e símbolos". Aqui também se encontram "um ponto de interrogação, um espanto, um desânimo um corpo".

A poeta mantém-se à procura do ser em si, agora reassumindo a função de filosoeta — da autora que pensa a vida com a poesia — com antecipação de uma conclusão: "Sou minha maior pergunta — a lógica da existência não deve ser a mesma lógica humana, ou, pior, ela pode não ter lógica alguma".

A poeta assume um "pensar com os olhos", estabelecendo no livro uma semiótica da reflexão em que predominam imagens visuais atinentes à memória de suas vivências. Nessa instância, ela o diz, "o sentido se inventa", donde ela inventar "olhos de outro", mesmo porque não obstante o escuro do não-revelado procura se enxergar através das palavras. A poeta chega a dedicar um poema ao filósofo, para quem as coisas são o que são, e diz: "importante é a reflexão, não o conhecimento".

Como filosoeta, Ana Paula questiona as circunstâncias em que se dá o conhecimento de si mesma em confronto com o real. A autora cresce muito poeticamente com a reflexão de suas ideias, mesclando nos poemas o imaginário com situações concretas em sínteses que dizem muito nas entrelinhas. Ela sabe, por exemplo, como disse S. Tomás de Aristóteles, que poeta e filósofo têm algo em comum: o conhecimento lírico pode, sim, levar ao conhecimento do real.

Há neste livro também um questionamento da (sua) condição mulher, quando ela declara com convicção: "Só converso coisas sérias com as palavras", de que são exemplares os poemas "Carta", "O corpo sem abraço", "Eu", entre outros.

Ana Paula inclui ainda observações líricas urbanas, sendo nela incisiva a influência da territorialidade. É o caso de "Poema amarelo", "Lenda moderna", "Lisboa", "Viagem II". "Choveu em Minas: as ruas ficaram cheias — de flores de ipê." Como incursiona com reminiscências atávicas (também comuns em seus livros precedentes): "Noites na fazenda — chão poeirento — solidão — cheia de estrelas", incluindo-se os poemas "O vô", "A dança das ilusões", "Viver é só criar lembrança".

Todos os centros do mundo é um livro simples e profundo, gostoso de ler, e que consolida a presença de Ana Paula no cenário poético do país.

 

 

Conhece-te a ti mesmo

Os olhos foram feitos

para olhar pra fora

mas se o que quero ver

está por detrás deles

com que olhos devo olhar?

Invento olhos de outro

ou apenas no escuro

procuro me enxergar?

Será que deveria

conhecer a mim

ou antes, me inventar?

Minha voz

sempre soou desafinada

por isso não sou voz

 

 

 

 

 

 

Medo todo mundo tem. Seja de cobra ou de rato. De assalto ou do fracasso. De tomar uma decisão errada ou de assumir amizades inconfiáveis que surpreendem pelo lado negativo. Há quem tenha medo de escuridão. Quase todo mundo tem medo de dentista. O rico tem medo de ficar pobre. O pobre, de cair na miséria. Todo mundo tem medo de perder o emprego. De juros bancários. De perder o bom nome na praça. De políticos corruptos. O medo é vasto e pertence à condição humana.

O escritor inglês Tim Lihoreau é autor de um livro inusitado, cujo título Você tem medo de quê — fobias modernas (Editora Globo) reúne uma porção considerável de artigos sobre medos contemporâneos com nomes que divertem os leitores. É o caso de aperepipofobia — medo de abrir emails; inanofobia — medo de ser colocado na espera telefônica; coloquiofobia — medo de conversar com as pessoas; agmenofobia — medo de entrar na fila errada; magnufraterfobia — medo de reality shows, ou infansermofobia — medo de que o filho pequeno desligue o telefone durante uma conversa muito importante.

Segundo Lihoreau, o homem de hoje tem mais medo que no passado, tanto em relação ao mundo moderno e aterrorizado quanto no seu próprio cotidiano, na sempre crescente proliferação de novas coisas para se pensar. Por isso, reconhece o escritor, reuniu "um monte de medos para tentarmos rir de nós mesmos". Na verdade, existem algumas dessas fobias que não são nada convencionais e podem até parecer bem estranhas. É o caso de turofobia — medo de queijo que acomete pessoas que não podem ver nem sentir o cheiro desse alimento. Esciofobia é o que se refere a quem tem medo da própria sombra ou a dos outros. Somnifobia é o nome que se dá ao medo de dormir. Isso costuma ser resultado de pesadelos intensos ou excesso de ansiedade. A gerascofobia faz com que a pessoa não queira envelhecer e a cada ano isso pode agravar, se não receber tratamento. Nomofobia, que remete imediatamente ao uso abusivo do celular, consiste em ter medo por estar longe do telefone, estar com ele sem bateria ou quebrado, e assim não poder ser contatado. O medo das pessoas que não suportam o número 666 parece um palavrão pronunciado por um Et: hexakosioihexekontahexafobia. A sua origem relaciona-se à religião, que tem nesse número a representação do anticristo. A omfalofobia é a fobia por umbigos. Nesse caso, a pessoa não consegue olhar nem tocar nessa região do corpo. Hilofobia é o medo de árvores  resultada de histórias que crianças ouvem sobre florestas mal assombradas e bruxas, fazendo com que tenham a sensação de perigo. Pogonofobia é ter medo de barbas: quanto maior e mais cheia for a barba, maior o medo. Heliofobia identifica as pessoas que têm medo de Sol. Abissofobia é o medo de ficar na beira de abismos, precipícios ou despenhadeiros. Ablutofobia é o medo persistente, anormal e injustificado de enfrentar a situação de lavar, tomar banho ou fazer a limpeza.

Acluofobia é o medo do escuro. Agorafobia é o medo de sentir medo. Atividades como ir a shows, atravessar pontes longas, túneis, multidões, entrar em locais públicos ou até mesmo viajar sozinho de ônibus, trem ou avião, são situações que os agorafóbicos evitam. Ailurofobia é o medo de gatos e aracnofobia, de aranhas. A astrofobia é o medo de trovões e relâmpagos. Segundo pesquisas recentes da Organização Mundial de Saúde, afeta aproximadamente 5% da população mundial. Catoptrofobia é um medo mórbido de espelho e coimetrofobia medo de cemitério. Coulrofobia é o medo de palhaços; quem a tem desenvolve verdadeira repugnância a todos os adereços no figurino do palhaço, como a peruca, a maquiagem e os sapatos. Distiquifobia é como é conhecido o receio de acidentes. É preciso muita coragem para defrontar tantos medos! O pior é ter medo de si mesmo e não enfrentar os próprios problemas.

 

 

 

 

 

 

 

Para José Modesto Santos, que sabe "praticar" Deus.

 

A literatura ajuda a nos constituir como seres que desconfiam, afirma Regina Dalcastagné, porque "não há mais como dialogar com o mundo sem desconfiança, tampouco ter a pretensão da imparcialidade em meio a um emaranhado de discursos [quando] somos levados a optar pelos que nos convém e a arcar com a responsabilidade da escolha". O que existe hoje é a "hermenêutica da suspeita", como Paul Ricoeur chamou a verdade profana. Grandes obras e eventos contemporâneos põem em xeque hoje o que funciona para construir para destruir, destruir para reconstruir o universo num grão de areia; que personagens são agora verdadeiras colchas de retalhos de panos rotos que, tantas vezes com o próprio exemplo, agem como se perguntassem o tempo todo "como pode a vida tornar-se essencial"?, porque "a realidade é irremediavelmente estranha", ou por que é preciso desvelar "máscaras silenciosas", uma vez que, como disse Lukács, saber consiste apenas em soerguer um  véu.

Hoje já não existe leitor que desconheça que todo texto ou evento contemporâneo se pauta na fragmentação do discurso, na relativização da verdade, na postura indagadora em relação ao mundo com novas concepções de tempo e de espaço. Agora, os protagonistas são herdeiros de seus malogros, de sua insanidade, pois já não há espaço para heróis, gestos magnânimos ou palavras eloquentes. O que se lê/ouve/vê hoje reflete a reflexão de uns sujeitos confusos, que tropeçam no discurso, esbarram nas quinas dos livros, perdem o fio da meada, que se deixam enganar, porque mesmo o Juízo Final já é uma realidade presente no cotidiano da Terra. Confira-se, por exemplo, pela ameaça constante de a Coreia do Norte iniciar a terceira guerra mundial. Já se faz notar em livros, por exemplo, a expansão do diálogo como uma forma desesperada, liricamente angustiante de os personagens da vida estarem à procura de si mesmos, de uma identidade pessoal que os diferencie da indiferença humana para tudo o que é notado mediante um sistema criado para isso, tenha ele o nome de marketing ou igreja, doença ou subserviência, solidão ou nada. Os leitores já observaram que o diálogo não é simplesmente troca de falas entre interlocutores, mas o processo de autoconhecimento do outro, exercício de alteridade para a consciência de si e do outro, como analisou Bakhtin.

Os leitores hodiernos já perceberam que todos estão mesmo à procura de uma pátria transcendental para suprir a ausência da ética afetando a "possibilidade de um último fracasso humano" (Lukács), e para admitir, mesmo com fé, uma salvação para cima. O nome de Deus é negociado com mentiras eloquentes, com o sentimento de ser isso um negócio lucrativo, mas não exegese da perversão da religiosidade que ainda se escora no medo de um fracasso humano, que é não garantir a eternidade. Para a quase totalidade dos seres, a religião é o "ossuário de interioridades mortas". A ética da vida que pensa cada alma como "uma realidade singular e incomparável", embora tanto estranhamento, já não pode coibir ninguém de livrar-se de condicionamento e de sua própria reflexão, geralmente polêmica, desencaminhada por dogmas, princípios cristalizados, preconceitos, obediências, culpabilidade onipresente enquanto durar sua frágil e rápida existência. A finitude já em si é o limite da tragédia humana. Ao buscar-se mais, o homem perdeu o seu próprio chão e permitiu que ideologias invasivas dominassem sua consciência. Escreve L. Feuerbach: "o conhecimento de Deus é o conhecimento que o homem tem de si mesmo". O homem não se deu conta, como o fez Paul Davies, de que "o universo criou a sua própria consciência". Por isso, deve-se pensar no que escreveu Marcelo Gleiser: "é o imperfeito, e não o perfeito, que deve ser celebrado".

Deus é assim o "reconhecido como necessário", não para escravizar a consciência humana, mas para prepará-la para alcançar por si a própria grandeza. Deus é a "coerência significante" contra a douta ignorância. O homem não pode ser um fracasso existencial. E Ele não depende do homem para nada. A criatura, no entanto, imagem e semelhança, tem, sim, uma função nobre na vida. Quem espera alguma coisa de Deus tem de pensar como Deus, não como os homens. Deus não pode ser referência apenas para quem sofre, mas ser Exemplo para quem quer ser feliz. Pensar Deus na prática religiosa ou em literatura é lembrar sempre que "escrever é um ato inacabado". E que pensar tem de levar à prática. Gabriel Josipovici já alertou: "O leitor da Bíblia que não tiver partido pão com Cristo deve permanecer cético ante todos esses argumentos acadêmicos".

 

 

 

 

 

 

Solidão? — pergunta sem resposta. É muito difícil sobreviver à solidão sem inteligência: as raízes do passado crescem como cabelos e unhas no espelho cotidiano da vida. Qualquer ser humano sem amor vive de incoerência, é princípio sem desfecho, tem energia de pilha, se assusta consigo mesmo, trafica um eu impessoal ou egoísta, se basta em lassidão de compromissos fugazes, apega-se a um blue arrependido, à ilusão do provisório, ao escombro do lixo em terreno baldio. A pior companhia da solidão é a memória. Mas, às vezes, quem sabe viver só se multiplica em dois. E é feliz.

Quem era agora o(a) solitário(a)? Um escritor Ulrich Bech buscando qualidade de vida na desertificação do humanismo. Um Vitângelo Moscarda repetindo em cada manhã que queria estar só de um modo inusitado, totalmente novo. Um Winnicott para quem a solidão poderia ser "uma alegria de estar escondido, mas um desastre não ser achado". Um Edward Hopper pintando com olhares crus o "Quarto de hotel", a "Casa ao lado da ferrovia", a leitora quase fantasma em "Cadeira"? Um Nietzsche a chamar a solidão de "meu lar". Um Rilke a bater na tecla que "as obras de arte são de uma solidão infinita". Um Bachelard muito aceso em A chama de uma vela a ensinar com sua incrível beleza no pensar que "é precisamente na ausência que a proximidade se faz maior", porque "um coração sensível gosta de valores frágeis". Um Drummond universalmente resoluto de que "não há falta na ausência" porque "a ausência é um estar em mim", porque "a ausência assimilada / ninguém a rouba mais de mim". Um Rubem Alves dizendo ao mundo: "Sua tristeza não vem da solidão. Vem das fantasias que surgem na solidão". Um Cortázar e um Borges escrevendo respectivamente Casa tomada e A casa de Asterión. Um Octavio Paz a predizer em Labirinto da solidão que "o homem é o único ser que se sente só e o único que é busca de outro". Um Carvalho para quem a solidão é "uma cápsula de anonimato", "escudo digital", "subterfúgio da coletividade", "sentimento de esvaziamento e a carência desmedida", porque "a solidão, sob o império dos objetos da moderna tecnologia, não só distancia os homens nas suas relações face a face, como também cria uma redoma crescente de artificialidade nas suas vidas diárias", pois "entramos no paraíso artificial das imagens e sons virtuais, onde o homem isola-se com formas e conteúdos estetizados, mas vazios de sentido".

Um Paul Auster produzindo uma outra A Invenção da solidão. Uma Rachel de Queiroz repetindo hoje que "a gente nasce e morre só. E talvez por isso mesmo é que se precisa tanto de viver acompanhado". Uma Clarice Lispector a lembrar que "ninguém é eu e ninguém é você: esta é a solidão". Um Aristóteles questionando se "o homem solitário é uma besta ou um deus". Uma Marina Haizenreder se perguntando: "do que as pessoas sentem falta? O que faz com que elas se considerem incompletas em si mesmas?". O que, por conseguinte, leva qualquer ser humano a também se perguntar onde está a gênese do homo solitarius. Estaria na "literatura de evasão" medieval, como estuda Celso Castro? Nos chamados studii — ou locais para a leitura e guarda de papéis familiares, cartas e segredos da Renascença? Na desagradável "bílis negra" que originou o humor imaginário da solidão? No aforisma de Montaigne de que "é preciso que nos sequestremos e tomemos posse de nós mesmos", porque, acrescenta o autor de Da solidão, "a coisa mais importante do mundo é saber pertencer a si mesmo". Um Tertuliano Máximo Afonso em O homem duplicado, de José Saramago, que toma conhecimento através do amigo que a distração "é o remédio de quem não precisa dele". Um Henri David Thoreau, que viveu por opção a experiência da solitude em Walden e que deste condicionamento um dia afirmou: "o que tenho nas mãos é um pouco de poeira de estrelas e um fragmento do arco-íris".

 

 

 

 

 

 

Por causa de meses sem chuva na cidade, os pernilongos invadem tudo e já têm pleno domínio da situação. É impressionante a quantidade deles dentro das casas e em tamanhos cada vez maiores. Bichos horrorosos! Pernilongos são invasivos, chaturebas, um incômodo. Atacam em massa, deixam as pessoas insones, exigem proteção a crianças. E dá-lhe repelente em pastilha, aerossol de inseticidas, fumacê, fogo em pelotas de cocô de vaca, álcool com cravo, telas, óleo de citronela, vaporizadores, raquete, cortinado, ventilador... Nada adianta, tudo é paliativo. Eles quase sempre vencem a batalha contra a paciência, a irritação, o medo fóbico e real de a picada causar alguma doença.

Pernilongos lembram os políticos brasileiros: são sanguessugas, oportunistas, fazem muito barulho, roubam o sono dos justos, não acabam nunca! E nunca se dão por satisfeitos.

Impressiona também o fato de, entra ano, sai ano, e cientista algum ter ainda descoberto um antídoto letal contra os pernilongos. E de não haver resposta convincente para a razão de ser de eles atacarem justamente o ouvido, característica irritadiça desses pernegudos.

Além de picar, eles têm essa ampla capacidade de azucrinar as pessoas logo à noite, hora do sono reparador da energia. E nisso são implacáveis. Todo mundo reza para chover uns três dias sem parar para acabar com as levas dos culícidas. Ninguém suporta mais essa serenata maldita e os enormes hematomas que eles deixam no corpo.

Pernilongos tiram qualquer pessoa séria do sério. Nem reza pode com eles. São um flagelo contemporâneo a desafiar a ciência. Impossível resignar-se ante tamanha ecochatura. Eles levam puristas a braguejarem palavrões, crianças novinhas a querer voltar para o útero da mãe, velhos a invocar a ajuda de Deus para se livrarem desse infortúnio. A situação é pior junto ao mato de lotes, jardins, lagoas, córregos, enfim, onde a natureza ressente a falta d'água. Ainda não há como se livrar dos pernegudos. E as condições climáticas dos últimos meses são propícias ao desenvolvimento do mosquito, cujo ciclo reprodutivo é de 7 a 10 dias. Em face da distância entre as ações da zoonose e a rapidez da proliferação dos pernilongos torna-se difícil o combate e até o extermínio deles.

Em Tatuí, cidade paulista, as vendas de inseticidas cresceram 422% de julho a setembro, chegando a faltar o produto nas prateleiras. Soluções caseiras, como o uso de álcool misturado ao cravo, não têm eficácia comprovada cientificamente. Produtos que têm como princípio ativo o piretroide, mesmo não tendo muita toxicidade, podem provocar alergias e reações desagradáveis, donde seu uso dever ser minimizado.

O curioso é que são as fêmeas que picam, deixando na picada uma saliva na pele que contém diversos anticoagulantes e enzimas em sua composição, para que elas consigam sugar o nosso sangue mais facilmente. O problema começa quando de bucho cheio o pernilongo vai embora, fazendo com que o nosso sistema imunológico reaja a essa substância, produzindo anticorpos para combater os antígenos presentes na saliva do culícida, provocando a liberação de histamina que acaba desencadeando uma reação inflamatória. O segredo está em evitar coçar o local onde se é picado.

Só Deus pode com os pernilongos. Valha-nos Deus!

 

 

dezembro, 2017

 

 

 

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