POEMA DE GUARDANAPO

 

 

O guardanapo do Beirute

a caneta do garçom

sustentam a paixão

que não repercute

nem vai a lugar algum

tão somente suscita

a rima comezinha

a lira pífia do poeta

aprendiz de faquir

 

E o poema vira bolinha

imóvel no chão

ao aguardo do gari

 

 

 

 

 

 

SORTE DE JULIETA

 

 

                   a Thiago Pethit

 

 

vagando à noite na cidade, ela

busca na luz que ofusca o toque

nos lábios que faz arder a alma vã

de bailarina de boate, entre

gentes aos milhares, com seu

vestido azul, branco e vermelho

de branca de neve no espelho,

madrugada adentro, pelo

cruzamento de carros e

olhos no breu,

para enfim deparar com

um sorriso de Romeu

 

 

 

 

 

 

SEM TETO, SEM CHÃO

 

 

À espera do voo,

olhos aguardam no painel de controle

a possibilidade exígua

de comunicação dos signos.

 

A dor vê-se sob a lupa

da interrogação.

 

O amor, em sua ilusão,

roga a Cronos

a passagem das horas

em um átimo.

 

A aeronave e o sonho

resistem a deixar o pátio.

 

 

 

 

 

 

DE MALAS PRONTAS

 

 

Desligar as luzes

Fechar as janelas

Trancar a porta

 

Abrir a bagagem do desconhecido

e desorganizar sentimentos...

 

Viajar é perscrutar a casa

que levamos dentro

 

 

 

 

 

 

ENVELHECENDO

 

 

Os buracos no tecido do

toldo de papel de padaria

são os olhos

da tartaruga hipnotizados

pela coreografia do tempo

 

As janelas estão abertas

 

A tartaruga com fome de

pão e fé gesticula minimamente

 

O tempo, porém, não olha para trás

Segue estoico hirto indiferente

 

 

 

 

 

 

DIFERENÇA LUNAR

 

 

Vai.

Leva os ternos, os quadros, os papéis,

as taças, as aplicações e as explicações;

tudo que me desconstrua.

Não me completa quem não olha para a lua.

 

 

 

 

 

 

GUERNICA

 

 

Há um quê de desumano em meu abraço

Não percebe?

Possuo destroços em lugar de órgãos

infortúnios de um tempo sem pecado

o traço de Picasso na face

e nas extremidades pequenas avarias

 

Creia:

houvesse algo entre nós, desmoronaria

 

 

 

 

 

 

LÍQUIDO

 

 

Perambulando com sede

pela rua

esbarrou

em um amor sem nome

sem número sem calma

 

Em casa

com as mãos ainda meladas

rasgou o livro do Bauman

 

 

 

 

 

 

ENTREMENTES

 

 

No deserto de Wenders, caminha a

urgência de temperança. Os

dentes afiados do

desamparo perscrutam a

dúvida e seu abismo

 

O tempo dança passos

impostores. Entrementes a

intimidade das línguas cala a

crueza das dores.

 

 

 

 

 

 

RESILIÊNCIA

 

 

sentada no último

banco daquela praça

da última rua à direita,

tenho por companhia

uma formiga-cabaça

e me dou por satisfeita.

 

 

 

 

 

 

SALADA MISTA

 

 

Posso dizer que sou outra pessoa.

Abandonei o hábito de comer

a pera, a uva e a maçã

que o diabo amassou.

 

 

 

 

 

 

MEDO

 

 

Medo de ficar assim:

sem sentido,

sem atrativos,

impenetrável.

 

Medo de ficar assim:

sem voz,

sem persistência,

incomunicável.

 

Medo de ficar assim:

de costas,

sem percepção,

inatingível.

 

Medo de ficar assim:

sem conforto

nem poesia,

imutável.

 

Medo de morrer assim:

com medo,

sem tempo

de aceitar a velhice.

 

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Noélia Ribeiro nasceu em Recife. Mudou-se para Brasília aos 12 anos. Graduou-se em Letras na UnB e fez pós-graduação em Linguística no UNICEUB. Lançou seu primeiro livro independente, Expectativa, em 1982. Em 2009, publicou Atarantada (Ed. Verbis); em 2015, Escalafobética (Ed. Vidráguas) e, em 2017, Espevitada (Ed. Penalux). Taquígrafa aposentada da Câmara dos Deputados, tem poemas publicados em diversas antologias e revistas eletrônicas. Recebeu da Secretaria de Cultura do Distrito Federal o Prêmio FAC 2017 — Igualdade de Gêneros na Cultura. É uma das homenageadas do 31º Salão de Poesia Psiu Poético, em Montes Claros/MG, em 2017.