©scott hove
 
 
 
 
 
 
 

Bete arrasta as sandálias como se precisasse desgrudar uma verdade da calçada. Verdade diferente daquela entranhada nos ensinamentos frescos de dona Elvira. O sol penetra pelos cabelos ruivos da menina e, no avesso de sua cabeça, dilata as palavras da catequista. Deus não pode querer isso.

Passos pontiagudos, respiração ofegante, cenho vincado. Deus fala nos ouvidos de dona Elvira? Ela conhece as coisas da Bíblia, cita e recita de cor, Gênesis, capítulo oito, versículo sete, Mateus, capítulo quatorze, Paulo, João, Jeremias. Arremessa as palavras como se a Bíblia entrasse pelos dedos, corresse pelas veias e saltasse pela língua. Sua boca, uma metralhadora de Deus.

Não! A voz de Bete excita os músculos da perna, ela precisa encurtar os metros que a separam de casa, abraçar Bernardo, dizer que sempre o amará. Eu vou te encontrar, sim, não importa o que ela disse hoje. Os olhos, num duelo com os cabelos dançantes; as mãos, nas alças da mochila que trepida nas costas, como se esmagassem as injustiças do mundo. Um quarteirão de esperança. Um longo quarteirão. Mas quando vê, do outro lado da rua, o menino com o cachorro, as perninhas de onze anos não suportam o peso do desespero. Ela desaba na mureta, arranca a mochila e pega a Bíblia, onde está a passagem? Onde? Os dedos rebeldes às ordens do cérebro. As lágrimas embaralham as sílabas e, pela primeira vez, um palavrão vaza dos lábios salgados.

No peito, lateja a frase da catequista. Não, Elizabeth, os cachorros não vão pro céu; somente nós humanos, que somos imagem e semelhança de Deus, temos alma. Somente nós temos livre-arbítrio. Somente nós podemos escolher o caminho da salvação. Deus não era cheio de bondade? Mamãe sempre fala isso, dona Elvira, Dom Arnaldo, todos na igreja pedem e retribuem e entregam suas almas pra Ele, eu rezo pai nosso, ave maria, creio em deus pai, canto os salmos, saio em procissão na páscoa, no natal desde o ano retrasado, não como carne na quaresma, não olho pros garotos muito menos pras garotas, não respondo pra mamãe não não não. O menino e o cachorro do outro lado da rua. Ela quer ser aquele menino. Precisa ser aquele menino.

Sara entrou na creche carregando um embrulho de pano. Filha, aqui está o que prometi. E revelou aquela bolinha de pelos brancos que sequer sabia abrir os olhos. Bete logo arrancou o cachorro do colo da mãe. Bernardo! Os irmãos têm nomes que começam com a mesma letra, não é? Sara, sem pronunciar palavra, disse que o cachorro estava batizado. Você já tem quatro anos, vai saber tomar conta do Bernardo. Tem que cuidar dele igual a mamãe cuida de você. Mas ele não é meu filho! Bete, há quase um ano, pedia por um irmão. Sara jamais se permitiria outro filho. Resolveu o problema com duas visitas ao pet shop. 

Bete atravessa a rua, quer abraçar o cão que abraça o menino. Como assim os cachorros não vão pro céu? Bernardo nunca fez mal a ninguém, nunca roubou a comida de outro cachorro, nunca fez coco fora do jornal, nunca mordeu uma criança, nem mesmo a Carol que puxa o rabo dele ou o Murilo que joga água no focinho. Nunca.

A porta que separava a sala de espera e o ambulatório era de madeira, mas, para Bete, era a porta de um frigorífico. Seus olhos e a porta: ímãs opostos. A mãe segurava em sua mão, tentativa vã de transfusão de esperança. Mais de quarenta minutos, a porta se abriu e, dela, saiu o proprietário do seu futuro. Silêncio espesso. Dona Sara, podemos falar em particular? Não, doutor, pode falar na minha frente. Tenho onze anos, já sei como são as coisas da vida. E sou eu quem cuida do Bernardo. O veterinário tragou o vácuo deixado pelas palavras, olhou para a mãe, que mexeu suavemente a cabeça para cima e para baixo. Bernardo está muito doente. Por isso tem vomitado sangue nos últimos dias. Vai direto ao ponto, doutor! Tudo bem. Ele está com câncer no estômago. Não há muito o que fazer. Tem poucos meses de vida. Dois, no máximo três. Mas doutor, na internet sai notícia a toda hora sobre curas, a medicina está megaevoluída. Não existe um remédio pra salvar Bernardo? Operação, talvez!

Bete se aproxima do cachorro e do menino. Não, meu Bernardo não será salvo. Nem pelo médico, nem pela dona Elvira. Dona Elvira descumpriu a palavra de Deus. A Bíblia descumpriu a palavra de Deus. Deus descumpriu a palavra de Deus. Qual é o nome dele? O menino, com a voz mastigada pela timidez, diz que é Pudim. Posso passar a mão? Ela coloca a mochila na calçada e o cachorro responde deitando-se: a barriga a pedir por afago. Naquele momento, Pudim é Bernardo. Bernardo, então, passeia pelas lembranças da menina. Desde o momento em que ela pegou a bolinha de pelo no colo, a vida começou a tecer os laços que a prenderiam ao cão. E quanto mais o tempo se estendia, mais grossos os laços ficavam. Cabos de aço. Bete era Bernardo. Voltava correndo da escola para brincar com ele, levava-o ao balé, jantavam ao mesmo tempo. Quando ela teve vontade de beijar Lucas, Bernardo foi o primeiro a saber. E escutou com a fidelidade peculiar que os milênios cunharam em seus genes. Bete e Bernardo eram espécies siamesas, seres que desprecisam de palavras para se comunicar.

A menina pensa em interpelar Deus novamente. Mas, enquanto acaricia os pelos de Pudim, fica confusamente claro que não há palavras que deem conta da ausência. Ela vislumbra vagamente que Deus não pode vencer o tempo e que a dor humana talvez seja divina demais para Ele. Percebe que suas lembranças nunca desaparecerão. Percebe que pode usar a memória para suplantar a falta de esperança de encontrar Bernardo no céu. E percebe que, lá do céu, velhinha, ela poderá lembrar do seu irmão. Bete, então, perdoa o veterinário. Perdoa dona Elvira. E perdoa os pecados de Deus.

 

 

[Do livro Amortalha, a ser publicado em 2017, pela Patuá]

 

 

maio, 2017

 

 

Matheus Arcaro (Ribeirão Preto/SP, 1984). Graduado em Comunicação Social e também em Filosofia. Pós-graduado em História da Arte. Além de escritor, atua como professor de Filosofia e Sociologia, artista plástico e palestrante. É colaborador em vários sites e revistas com artigos, crônicas, contos e poemas. Publicou o romance O lado imóvel do tempo (Patuá, 2016) e o livro de contos Violeta velha e outras flores (Patuá, 2014). Vive em Ribeirão Preto.

 

Mais Matheus Arcaro na Germina

> Contos