alto risco

 

 

ler-te

deveria ser apenas

o encontro dos meus afluentes

 

mas tuas águas

precisas

e nascidas

em buracos do peito

são meu desassossego

 

gela-me os ossos

seu tiro certeiro

esta ciência

de cavoucar-me

e revelar-me

aos meus esconderijos

 

queria

ah eu só queria

saber ler-te sem este risco

de sentir-me peixe

buscando ar em suas areias.

 

 

 

 

 

 

nada muda

 

 

na essência nada muda

não muda o dente siso

a noite que se finge dia

o outono que se desenha folhas

a bala perdida na carne

o brilho nonsense do punhal

os corvos nos umbrais de brasília

 

nada muda por aqui

não muda este imenso fascínio

que a morte exerce em nós

nem a essência deste final

o grande e permanente medo

de perdermos este chão

que um dia irá enterrar

o engano de sermos humanos.

 

 

 

 

 

 

náufraga

 

 

enquanto espero

a revolta do sangue nas veias

enquanto penso

a vida como fio de alta tensão

emendo possibilidades

nestes peitos sobreviventes

e com as unhas

cravo redes que levitam

entre minhas coxas

e minha imaginação

deixando rastros e nós

na carne dos meus desejos

 

nunca tive fôlego

para paixões imortais

poemas grandiosos

e respirações salvadoras

 

mas nunca

nunca é tempo demais até para náufragos.

 

 

 

 

 

 

muito além de memória

 

 

onde finais deveriam escorrer

como chuva em fins de tarde

— uma quentura úmida

onde dor deveria apenas

incomodar os ponteiros do relógio

— uma alfinetada no tempo

onde morte não deveria ser

este aperto ilimitado

— linha de infinitos desconhecidos

e

onde vida deveria se plantar além

muito além de memória

neste espaço chamado eternidade.

 

 

 

 

 

 

amor natural

 

 

era um amor de língua

e fogo

beirava a indecências

que cuspíamos na inveja

dos santos de pau oco

 

amor de pernas

de umidades

falo e fato consumado

consumido

no chão na cama em qualquer canto

 

amor não escolhido

nascido na baba

das carícias

colhido nos orgasmos

do prazer e da dádiva

 

era natural

aquele amor

de corpos e apetites enfurecidos.

 

 

 

 

 

 

reinvenção

 

 

inventaram

chamar-me vintage

como se a excelência do vinho

pudesse diminuir

esta sensação de rio

que perdeu a capacidade de enchente

 

reinventei-me chuva

 

não fui feita para reticências

a cada ponto

quero ser recomeço.

 

 

 

 

 

 

o amante

 

 

as flores que ele trazia

tinham perfume

beleza

malícia

das mocinhas de cabaré

 

disfarçava em hortelã

o uísque barato

e o medo de me perder

 

não sabia

 

eu já trazia nas unhas

a cor

a fome

o fogo

de uma dama das camélias

 

ele era só um coração batendo fora de mim.

 

 

 

 

 

 

há dias que demoram a nascer

 

 

andei por aí me sentindo invisível

sem vontades

sem coragem

apenas um coração de difícil solução

 

tropecei nas pessoas

elas não sentiram nem viram

o vaivém das minhas pernas

agarrei-me nas horas

elas correram como sempre correm

das minhas tentativas de pará-las

 

andei tanto e no entanto

nada saiu do lugar

 

era  só eu cansada e cansada

dos sonhos que cobriam a cama

e aquele corpo

que a sombra na parede

dizia ser meu.

 

 

 

 

 

 

chove

 

 

em dias de chuva

devia roer as unhas

 

perdi a graça

de chutar enxurradas

balançando quadris e cabelos

como se meu corpo não tivesse idade

 

em dias de chuva

devia estilhaçar vidraças

 

sob o peso das lembranças

respiro papel

e com dedos indecisos

reescrevo o futuro do presente

 

em dias de chuva

sou apenas sorriso de canto de boca

: saudade.

 

 

 

 

 

 

sob céus de nimbus

 

 

às vezes meu tempo fecha

perco-me em sensibilidades

tudo me atinge

tudo me fere

tudo me cala

nua

entrego-me às precipitações

enquanto me agarro

à promessa

que eu mesma me faço:

no dia em que a palavra

apagar os relâmpagos

costurarei os pulsos

outra vez serei salvação.

 

 

 

 

 

 

 

sobrevivente

 

 

escrevia

para me conhecer

: era passageira de mim

 

hoje

sou passagem

 

escrevo

para dar vida

ao silêncio.

 

 

 

 

canção de embalar manhãs

 

 

é preciso sono

tanto sono que nos cubra de amanhãs

que nos risque esta desesperança

que nos livre nestas profundezas

 

é preciso grito

tanto grito que nos abra as veias

tantas veias que nos lave o sangue

e nos desinquiete nesta dor de ilusão

 

é preciso cobrir-nos de fim de história

acreditar que ainda há recomeços

que ainda vale viver o intenso

apesar desta insônia que cobre nossas camas.

 

 

 

 

 

 

tempestades

 

 

podia morrer tranquilamente

a cada orgasmo

 

mas não

 

um orgasmo

se agarra ao outro

e o elo de uma cadeia

se forma

numa mistura

de gritos

líquidos

tempestades em agonia

 

no embate da respiração

descubro

: é sempre tarde para ressuscitar delicadezas

 

tenho jeito escandaloso de felicidade.

 

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Lourença Lou às vezes é prosa, outras poesia, mas sempre encantada com quem faz literatura. Formada em letras pela Fafich/UFMG e como educadora, pela vida, segue amando o dia seguinte. Sempre. Faz parte de várias coletâneas e Livros da Tribo. Publicou Equilibrista (Penalux, 2016) e Pontiaguda (Penalux, 2017).