O miniconto é uma das muitas formas literárias que se ampliam nestes tempos de novas tecnologias, novas plataformas, novos formatos. Foi trabalhando minicontos que Cesar Cardoso chegou a seu novo livro — Urubus em Círculos Cada Vez Mais Próximos. Cesar está mais corrosivo e cortante pois, entre seu livro anterior, As Primeiras Pessoas, e este, há efetivamente um processo de corte e corrosão de palavras, de enxugamento. E seus textos agora são híbridos de contos, cenas dramatúrgicas e poesia em prosa. Cesar conta como surgiu a ideia do livro:

"Comecei a escrevê-los da mesma forma que escrevo qualquer texto literário que não seja uma encomenda, sem nenhum objetivo claro ou proposta. Vem uma ideia, duas, dez. Elas vão se juntando e podem ter morte por inanição ou resultar em algum projeto, como um livro, por exemplo. Conforme estes contos foram se agrupando, surgiram ali possibilidades. Alguns eram um soco no estômago, trazendo a violência de nossas vidas urbanas, outros flertavam com o poema-piada do Oswald e da geração mimeógrafo. Outros ainda eram pequenas cenas de teatro. Por fim, se formaram duas vertentes principais: a violência urbana e o fantástico. O crítico Flávio Carneiro foi quem me apontou essa dualidade. E acabei escolhendo o caminho do fantástico para criar o projeto que resultou neste Urubus".

Sempre com esta temática, o leitor verá que uma boa quantidade de contos conversa com a nossa tradição cultural, recriando histórias como a Arca de Noé, a construção da Torre de Babel, a vida no Sítio do Pica-pau Amarelo, o destino de Ulisses ao retornar à Ítaca e à sua amada Penélope. Outros textos contam histórias baseadas em fatos inventados, como uma luta de box entre Borges e Kafka, o assassinato de Kafka por Gregor Samsa já transformado em inseto, o roubo do Santo Sudário, uma nova humanidade criada por Deus e seu fim trágico... São contos numa linguagem aparentemente sóbria, mas que desaguam num mundo impossível, que começa a existir na página e vai continuar a viver no leitor, possibilitando novas leituras das quais o autor não terá ideia nem controle. É o caso de:

 

"O ARTILHEIRO

Para Marcius Melhem

 

Logo cedo, após o café da manhã, sou levado para a sala completamente às escuras. Me conduzem até a posição em que devo ficar, alguns passos antes da bola. Não muitos, para não correr o risco de perder a direção dela. Ao ouvir o apito, devo cobrar o pênalti imediatamente, sem usar o tempo para tentar enganar o goleiro que, eles me garantem, está lá à minha frente, sobre a linha do gol, tentando defender minhas cobranças. O apito, alto e prolongado, é a única coisa que nós dois conseguimos escutar enquanto chuto e ele tenta defender. Alguém, ou algum mecanismo que nem eu nem ele conseguimos ver, logo repõe uma bola na marca do pênalti, torno a me posicionar, a ouvir o apito e me movimento para uma nova cobrança.

E assim passo meus dias, com uma breve interrupção para o almoço, que deve acontecer por volta das duas da tarde, segundo meus cálculos. Quantos gols terei feito? Quantos perdi? Não sei, mas sigo tentando me aperfeiçoar".

 

Cesar busca a síntese e a quebra do cotidiano, como no famoso miniconto de Augusto Monterroso:

 

"Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá".

 

E se no breve espaço do conto tradicional são imprescindíveis a estranheza e a intensidade, a fim de produzir no leitor a vertigem necessária para seguir naquele universo até o fim, em contos de uma página (ou até de um parágrafo), esta estranheza deve surgir sobretudo através dos silêncios. É assim que Cesar constrói Urubus em Círculos Cada vez Mais Próximos, título tirado do conto que fecha o livro:

 

"O TEMPO

 

 

Um minuto de silêncio antes que o juiz apite o início do jogo. Tempo entre o tapa na bunda do que acaba de nascer e o primeiro berro que vem subindo na garganta. Cachorros no deserto de Atacama latem para as nuvens que eles nunca viram e o mágico, na esquina movimentada, pede esmolas com sua cartola. Na galeria de paredes de vidro, a japonesa carrega O grito, de Munch, cortado a facadas. O PM para de balançar o termômetro e confere a temperatura. No escuro da sala, o relógio pisca 12 horas. O garoto chora porque não aguenta o peso da alça do caixão onde vai o corpo do pai. Ela segue seu striptease sem música no quarto sem espelhos. Só a tevê a ilumina. Na cena, o pelotão de fuzilamento dispara. A tartaruga sente a vibração da estrada e usa toda sua força para fazer a volta e se livrar das rodas que vêm a cem por hora. Os dois boxeurs entram em clinch, se abraçam e se beijam na boca. O afogado ainda respira. Na imensidão do vale, o monge se masturba. A criança comemora em frente ao bolo com três velinhas. Há balões, trenzinhos de marzipã, foguetes de chocolate, chocalhos de gelatina, fantoches de marshmallow. Dentro do bolo dorme o homem com roupa de couro e chicote. O sangue começa a manchar de vermelho o glacê branco. Na portaria, uma mulher ajeita a burka em frente ao elevador. O enfermeiro escova a dentadura. O homem-bomba está apertado para fazer xixi. A claquete vai bater para indicar ação. A atriz prepara o choro, pensando na filha com câncer. O faxineiro espia o pó que se acumulou no esqueleto do dinossauro. Uma granada voa. A freira arregala os olhos. O Titanic permanece imóvel no fundo do mar. O campeão de jiu-jítsu não atende o celular e cai zonzo. Restam no cinzeiro 44 cigarros inteiros, novos, não fumados, e apenas um, aceso. Ele bate na veia e prepara a injeção. O cego dá milho aos pombos na praia de Copacabana. O bispo arruma as hóstias. Os urubus voam em círculos cada vez mais próximos, mais próximos, mais próximos. O juiz olha o cronômetro e apita o início do jogo".

 

Cesar Cardoso chega a este Urubus levando ao extremo a máxima de Cortázar de que no conto o escritor deve vencer por nocaute. Escritor versátil, com larga trajetória como roteirista de programas de televisão (TV Pirata, A grande família, Sai de baixo, o novo Zorra e outros), autor de livros infantis e de poesia, Cesar sabe usar sua experiência a favor das suas narrativas, estabelecendo um ritmo alucinante que faz o leitor devorar um conto atrás do outro, sempre guiado pela curiosidade (um pouco mórbida, talvez) de descobrir qual o próximo estranhamento. Como em:

 

"PRIMAVERA-VERÃO

Para Bettine Silveira e Mara Santos

 

O estilista Pietr Rosui é o único não europeu a apresentar uma coleção na Semana de Moda de Paris, sem dúvida a mais importante do mundo. Para essa temporada, Pietr desenvolveu uma linha de casacos de pele confeccionados à mão, com shapes que brilharam no corpo de Way Mulberry, em sua cadeira de rodas de linhas influenciadas pelo design italiano.

Em seguida, o golpe mais ousado de Rosui: seus vestidos trabalhados com bordados e deixando as ancas marcadas. Foram o principal destaque da coleção, com suas fendas esvoaçando para fora das macas onde vieram Alisia Deschcovith e Lea Rydewni, num desfile inspirado em Edgar Allan Poe. Para quem gosta de detalhes, até as agulhas dos soros de Lea e Alisia foram feitas de ouro e não deixavam nada destoar na passarela.

Por fim ele nos mostrou mais uma vez seus casacões clássicos, de ombros bufantes e com o já tradicional toque báltico. Chegou a ser emocionante ver Raquel Dougherzy e Livia Cirmansk nos caixões transparentes que as traziam para seus últimos desfiles.

Quem quer novidades no mundo da moda pode tratar de seguir Pietr. Ou então esperar a próxima temporada".

 

 

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O livro: Cesar Cardoso. Urubus em círculos cada vez mais próximos.

Rio de Janeiro: Oito e Meio, 2017, RS$ 38,00

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maio, 2017

 

 

Alice Barreira é escritora e colabora no site Escritoras Suicidas.